Subir na arquibancada do Estádio do Pacaembu era algo que eu não esperava fazer nos meus dias finais em São Paulo. Resolvi aparecer para a foto das escritoras durante a Feira do Livro que estava rolando ali. A foto seria numa escadaria do lado de fora, mas apareceram tantas mulheres que foi preciso abrir as portas do estádio para nos acomodar. Teve um peso ver todas essas escritoras juntas no mesmo lugar. Especialmente por representarem apenas uma fração das autoras que vivem e produzem dentro dessa cidade. Senti falta de muitas.
Fiquei feliz de ter conseguido ir: foi a oportunidade de reencontrar amigas escritoras e conhecer pessoalmente, enfim, outras tantas. Feliz também pelo simbolismo de ter ocupado um pixel dessa imagem, quase dez anos depois de chegar em São Paulo sem conhecer ninguém, sem emprego e recém-saída do mundo publicitário, e estar saindo daqui com livros publicados, lida de uma forma que eu sequer poderia imaginar, ocupando um espaço lado a lado com muitas das grandes escritoras vivas do meu tempo. A vida acontece de uma forma muito doida.
Mas esse encontro também me trouxe uma porção de incômodos. Ver tantas (mas não todas) de nós juntas fez evidente o tamanho da desigualdade dentro do meio literário.
A começar por ver que as escritoras negras estavam em minoria numérica, mesmo que parte importante da nossa literatura tenha sido e continue sendo feita por elas. Cartazes posicionados na entrada do estádio deram conta de lembrar que a primeira brasileira a publicar um romance foi uma mulher preta, a maranhense Maria Firmina dos Reis, ali representada pelas escritoras negras que puderam marcar presença erguendo seus livros.
Outro incômodo que carrego há tempos ganhou contornos mais nítidos no meio daquela multidão. Se somos tantas, por que há espaço para tão poucas terem destaque no meio literário? Se somos tantas, por que apenas um punhado de nomes se repete na mídia, na crítica literária, no jornalismo cultural, nas editoras, nas listas e premiações?
Esses espaços são disseminadores do que está sendo produzido para o público leitor e escolhe esconder boa parte do que está sendo produzido na literatura brasileira. Por quê?
Se não fossem iniciativas independentes, como revistas, podcasts, clubes de leitura e projetos como o Leia Mulheres, eu teria a percepção distorcida que só um grupo seleto de pessoas escreve literatura de qualidade no Brasil.
As pessoas que ocupam posições importantes dentro desse mercado têm dificuldade de enxergar para fora de suas bolhas. Quem sabe essa imagem consiga dar dimensão do quanto eles estão perdendo de vista?
A literatura é nossa. Por isso espaço a gente não espera que alguém nos conceda, espaço a gente vai lá e toma.
Sentada na arquibancada de um estádio de futebol, me ocorre o pensamento que reivindicar um espaço tradicionalmente dominado por homens já me parece pouco. Eu não quero só me igualar a homens que escrevem. Quero ajudar a construir um cenário diferente da lógica de escassez que estrutura o mercado hoje, onde os degraus mais altos da escadaria estão reservados para poucos. Como se escassez garantisse qualidade, quando na verdade é uma forma de manter o controle de quem pode ou não continuar a fazer literatura.
É a quantidade que ajuda a trazer qualidade. Mais gente com incentivo para escrever também significa mais gente lendo. Mais ideias e histórias encontrando terreno para chegar aos leitores também significa a possibilidade de desenvolver ideias e histórias cada vez melhores. Mais mulheres escrevendo também significa mais mulheres aprendendo umas com as outras.
Por isso faria uma correção nesse meu texto “Não vai ter boas-vindas”: as boas-vindas que tive vieram justamente de outras escritoras, com quem pude trocar, aprender e ver que não estou sozinha nas minhas dúvidas e perrengues. Com elas pude entender que o sentimento de não pertencer a esse lugar é compartilhado por muitas. Que antes de subir o primeiro degrau dessa escadaria a maioria de nós precisa superar uma série de obstáculos, inclusive os internos, naquela pergunta insistente que nos persegue: serei eu escritora o suficiente para estar aqui?
Mas o que é que pode dizer melhor se somos escritoras se não nossas próprias palavras, uma após a outra, após a outra, após a outra, estendidas a perder de vista?
Assim como nossos próprios projetos literários, cada escritora é um processo em andamento, em vez de algo pronto, finalizado. Da mesma forma que o estádio que nos serviu de cenário para esse momento, seguimos com muita obra pela frente.
Se você tiver resposta para alguma das minhas inquietações, por favor, me escreva nos comentários!
A fama é uma ilusão mórbida feita de cera
No novo episódio do podcast Bobagens Imperdíveis, faço uma reflexão sobre o que é a fama. Para isso, volto no tempo até a Revolução Francesa e conto a história do famoso museu de cera de Madame Tussaud.
Cabeças cortadas, ilusionistas, digital influencers, boy bands em hiato, canibalismo e nossa relação doentia com celebridades: um show de horrores para vosso entretenimento a um play de distância.
Cliques, cliques e mais cliques
“O mais doido é se sentir alinhado a uma contracultura, é querer fugir de uma medida normativa (hetero, cis, capitalista, etc) de sucesso, mas continuar sendo arrastado por essa medida, como uma estrela engolida por um buraco negro. Arrastado? A quem eu quero enganar. É continuar querendo mergulhar de sungão e peito depilado nessa piscina mesmo sabendo que a água é rasa demais.”
— Eric Novello, numa newsletter sobre o que significa “ter sucesso” na literatura.
“99,9% dos bestsellers têm uma quantidade enorme de investimento e divulgação por trás”.
O mapa não é o território.
Makassar, a cidade na Indonésia onde as pessoas reconhecem cinco gêneros, ou como eles dizem, “cinco maneiras de estar no mundo”. (via newsletter Surra de Ref)
O projeto Ouça Mulheres é ótimo para conhecer a escrita de mais autoras, sobretudo brasileiras. Com narrações em português, espanhol e inglês
“A roça venceu”: chocada que a frase “favela venceu” já foi apropriada pelos sertanejos, o braço midiático do agronegócio, que trabalha ao lado do bolsonarismo em sua guerra cultural.
Daniel Duncan traz más notícias aos preguiçosos: a melhor forma de se livrar do trabalho é trabalhando.
Um guia para quem, assim como eu, está em busca das drogas certas para acompanhar o podcast interdimensional animado Midnight Gospel.
Ser um bebê é total uma viagem de ácido.
Importante assumir nossas invejas.
Sou feia ou apenas pobre?
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“Existe a ideia de que os poderosos e podres de rico vão fugir da Terra e montar seus condomínios de luxo em outro planeta, ou em alguma Arca de Noé à deriva na galáxia. Uma espécie de Caco Antíbes nas Estrelas. Eu pagaria um bitcoin para saber o que se passa na cabeça de um super-rico desses, e apostaria dez bitcoins que eventualmente se passa o mesmo vazio existencial que também preenche as pessoas comuns, trabalhadoras, que não possuem um cryptoputo, assim como eu. Rico só pensa mesmo em como ficar mais rico e em se distanciar de pobre? Isso sim é que é pobreza.”
— Do meu texto mais recente lá no blog, “A quem pertence o espaço” ✨
Edição escrita ao som de “A cidade”, de Chico Science & Nação Zumbi.
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A qualquer momento volto com mais minhocas da minha cabeça.
Um beijo,
Aline sempre brilhante!
Aline, que texto bom!
Estou com vc no ocupar espaços, essa tem sido minha estratégia de vida. Apoiar outras mulheres e ocupar os espaços, sermos irmãs e não rivais, é o que me ocorre por hora. Vamos juntas! Bjs