Devo muito à solidão. É o estado no qual a dúvida comparece, e sem alguém por perto para me dizer que é isso ou aquilo, preciso eu mesma construir a jangada para buscar a resposta. É um tipo de talento saber o que fazer dessa solidão, em vez de querer espantá-la, como se ela apenas atestasse algum tipo de fracasso em ser social, em ser querida, porque ser o tempo todo circundada por gente feito uma lâmpada atraindo mariposas parece ser uma espécie de troféu que se tem gosto de exibir, quando o que acho chique mesmo é observar uma pessoa sozinha comendo seu sanduíche na beira do rio e pensar que ela deve ter aquele espaço reservado na agenda, possivelmente disse para alguém "poxa, hoje não posso, tenho um compromisso" e o compromisso ser com ninguém mais além dela mesma.
Estava sozinha numa exposição quando ouvi Nick Cave dizer o quanto a solidão é importante para o processo dele, que a escrita é a atividade mais solitária que existe, porque só você pode escrever o que você precisa escrever, ninguém pode sentar no seu lugar e colocar as suas palavras para fora (por enquanto, nem mesmo uma inteligência artificial. A ver). Nick respondia a uma pergunta: "Por que você é criativo?". Do outro lado da câmera estava um cineasta alemão, Hermann Vaske, que repetiu a mesma pergunta por 30 anos para uma infinidade de artistas de todas as áreas com quem esbarrou pelo caminho, dava um papelzinho para cada um, podia ser a Marina Abramovic, o David Bowie, o Bill Murray, a Marjane Satrapi, o Almodóvar, gente nessa linha, e pedia que escrevessem ali a resposta. E eram diversas e variadas essas respostas, em significado e em caligrafia, tipo a de Mandela, um capricho digno de quem mantém bullet journal bem enfeitado, embora a maioria delas seguisse na mesma direção: sou criativa porque estou viva, porque sou assim, porque não sei ser de outro jeito, porque sou filho de Deus. Essa última, do Pelé, consegue, em poucas palavras, tornar a arrogância e a humildade inseparáveis, como é bem típico do próprio ato de criar.
Tenho lido um livro que conta a história dos inventores que tornaram possível o mundo digital que hoje habitamos, desde a Ada Lovelace, que nos idos de 1843 já visualizava uma máquina que, mais do que resolver um tipo específico de equação, pudesse ser programada e reprogramada para realizar uma variedade ilimitada de todo tipo de tarefa, até o momento atual, em que inventam uma dessas que cabe no bolso e faz todo mundo se comportar feito um viciado em jogos de cassino. Mentira, isso não sei se conta, ainda estou no capítulo sobre a invenção da internet. Mas levou quase um século e toda uma cadeia de pessoas fazendo contas, escrevendo códigos e soldando placas de silício para que a tal máquina imaginada por Lovelace se tornasse possível.
O autor, Walter Isaacson, tenta mostrar que o computador e a internet não foram criação de uma única mente genial, mas de um trabalho colaborativo de diversas mãos e cabeças ao decorrer dos tempos. Para criar algo novo parte-se de algo que já foi feito ou pensado por outras pessoas. Não se cria algo grande, capaz de gerar tanto impacto, completamente sozinho. Sim, importante lembrar desse aspecto coletivo da criação tão difícil de perceber porque nossa consciência sobre sermos parte de algo maior é mesmo muito chinfrim, mas não deixo de notar o livro dando pistas de que essa linda interação entre pessoas espalhadas no espaço e no tempo só foi tão frutífera por conta dos indivíduos que fizeram parte dela, com suas habilidades, suas limitações, suas particularidades, seus vícios, suas piras bem específicas, seu jeitinho de fazer as coisas. Claro, criação coletiva, mas afinal era aquela pessoa acordando no meio da madruga para resolver um cálculo que levou a um grande avanço, ou aquele cidadão virado na paranoia trabalhando sozinho para garantir que ninguém ficasse com os créditos pelo seu trabalho.
A imagem do artista que cria sozinho está fora de moda, em parte porque é um momento propício para tacar pedra no que venha da ideia de individualidade, já que chegamos ao argumento supremo de que é tudo culpa do capitalismo, em parte porque é mesmo verdade que precisamos uns dos outros para criar, ainda que boa parte das vezes quem nos ajude a avançar nem saiba da nossa existência ou já tenha morrido há muito tempo. Mas preciso reconhecer que essa imagem do artista solitário não existe por acaso, da mesma forma que eu gostava de defender que não é preciso sofrer para ser artista, até me contradizer diariamente com as doses cavalares de sofrimento que não consigo tirar do meu processo, talvez porque seja parte integrante dele, e a angústia que experimento e que com frequência me paralisa é também o instrumento que indica que estou realmente perto do que desejo escrever, do que vale a pena ser contado, porque já dizia Lacan que a angústia não mente.
O que não funciona para mim é escrever com um monte de gente em volta, sejam pessoas olhando por cima dos meus ombros ou as vozes que saem da minha máquina assombrada, cagando regras de como contar histórias, como ser publicado, como construir uma audiência, como fazer sucesso, as vozes da crítica dizendo o que presta ou não, a mídia dizendo o que vale a pena ser lido e que nunca é o que me meto a escrever, as expectativas dos leitores, o que os outros autores estão fazendo neste exato momento, quem é que está vendendo mais, o som das mariposas batendo na lâmpada acesa do outro lado da sala. "Ah, o artista não precisa sofrer", sim, soa bonito, mas a prática não está nem aí para a sedução do discurso. "Ah, você não precisa escrever sozinha", com licença, mas preciso sim. E quando penso que estou gritando para o vento, recebo de volta uma resposta que muito sabiamente lembra que a nossa sociedade nos condena ao isolamento para vender técnicas de companhia, e me dou conta que a solidão é o que verdadeiramente temos, sem precisar comprar de ninguém. De portas fechadas, estou sozinha com a minha angústia. De portas fechadas, não há mais ninguém para escrever essas palavras por mim.
Artistas que apoio
Acho importante contribuir com artistas que estão produzindo agora e que fazem diferença na minha vida, que influenciam meu trabalho. É minha forma de devolver. Enquanto não tenho condições de apoiar ainda mais artistas e projetos, eis a lista dos artistas que apoio de forma recorrente no momento:
Drops da Fal. Simplesmente a maior que temos, a Fal Azevedo faz literatura em todo canto que põe as mãos, na internet e fora dela, inclusive em diarinhos no zap que tantas vezes me ajudam a continuar.
Oli Maia. Ele me inspira em tudo o que escreve e tá lançando romance novo, que tive o privilégio de ler e recomendo demais. É um livro cheio de eitas, de ternura entre homens, de amizades mochileiras, de paisagens argentinas e sotaque portenho.
Alex Castro. Foi a newsletter dele que me inspirou a criar a minha, já faz uma boa década. Acompanhar os escritos e aulas do Alex é uma fonte constante de aprendizado, para muito além da literatura.
Antônio Xerxenesky. É muito bom ser uma das possíveis amigas que recebe as cartas que ele escreve e que me abrem o horizonte sobre pensar arte e fazer literatura.
Vanessa Guedes. Autora de uma das minhas newsletters favoritas, embala as palavras com tanto capricho que me faz degustar cada texto bem devagar. Gosto muito dos caminhos que ela trilha quando reflete sobre escrita.
Felipe Castilho. Além de ser um dos grandes nomes da literatura nacional, admiro demais como ele produz quadrinhos independentes e é muito legal poder acompanhar de perto o processo dele.
Raphael Salimena. As tirinhas da Linha do Trem são o meu café da manhã. Chega a ser investimento em self care apoiar o projeto e poder dar umas boas risadas com tirinhas inteligentes e surreais todos os dias.
"Por um motivo ou outro, toda a substância tinha se esvaído da amizade deles. De quem era a culpa, não sabia dizer, só que, após um certo tempo, a repetição tinha tomado o lugar da novidade. Era para se repetirem que se encontravam."
— Virginia Woolf, Ao Farol, na tradução de Tomaz Tadeu.
Ai ai, Virginia. Dia 29 fiz aniversário e era nesse tipo de repetição que pensava, porque o dia é o mesmo, todos os anos, mas a cada vez estou num lugar ligeiramente diferente, porque as repetições nunca poderão ser repetidas exatamente como foram antes, como meu amigo Tarrask bem me lembrou nesse dia, embora ele falasse das histórias que contamos. Nem que eu queira eu vou conseguir escrever o mesmo livro de novo. Leio Saramago dizendo que o fim de uma viagem é o começo de outra, e que é preciso ver outra vez o que já se viu, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, voltar aos passos que já foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. Pensando bem, gosto de comemorar aniversário. Permite que eu volte ao mesmo ponto, que haja o reencontro com quem faz parte da minha vida e que eu veja através dessas pessoas como as nossas repetições mudam devagar. Aparentemente aprender a gostar dos rituais também vem com a idade.
Beijos mais velhos,
Tenho sentido muita falta de ficar totalmente sozinha, isso tem me dado uma dor de cabeça constante porque não sei resolver esse problema (falta dinheiro, óbvio). Ler seu texto de hoje me fez pensar que não escrevi uma dedicatória pro meu novo livro e pensei em dedicá-lo ao quintal onde cresci. Preciso mandar email para a editora. A resposta do porque sou criativa não apareceu aqui, acho que sempre fui, do mesmo modo que sempre tive cabelos castanhos ou sempre gostei de cor de rosa. Sei la. Me parece tão natural quanto essas escolhas não naturais. Por vezes, desejo largar a criatividade e sei la, só fazer algo repetitivo e superficial, mas ai eu largaria a minha angustia preferida. Beijo.
Aline – deixando aqui uma nota de rodapé que talvez você já conheça e todos seus leitores também, mas vale a tentativa: Nick Cave tem uma newsletter sensacional, desde 2018, onde ele começou como uma sessão de perguntas e respostas para fans mas transcendeu para debates de questões tão profundas e complexas – e as respostas dele são de uma sensibilidade impressionante.
Em inglês: https://www.theredhandfiles.com