Andaram dizendo que a vista de São Paulo é horrorosa e que só na cabeça do paulistano um horizonte coalhado de prédios é uma puta vista mêo. Discordo e nem daqui eu sou, embora teimem em achar que sou paulista — só porque sou hipster?? Preconceito que chama.
São Paulo é o extremo oposto do lugar de onde vim. Venho de uma cidade horizontal, plana, planejada, seca, onde mal se vê gente andando na rua, de uniformidades e simetria, onde para ver o céu basta olhar para frente.
Quando vim para cá, demorei a me acostumar ao contraste. Hoje gosto desse horizonte onde tudo parece zipado, uma disputa louca por espaço, prédios amontoados entre árvores e antenas, um monte de gente trabalhando, ocupadas, indo de um lado para o outro alucinadas. Eu adoro ter vista para o maior formigueiro da América Latina!
Alguns podem argumentar que bonita mesmo é a vista para o mar, ou para as montanhas, para a exuberância da mata ou para as geleiras de onde se avista a aurora boreal. São cenários bonitos de se ver, claro! Mas só porque cidades no litoral têm uma vista maravilhosa, então nenhuma outra pode ter? Uma beleza anula a outra? Os padrões de beleza estão cada vez mais inalcançáveis, meu deus! Nem as cidades conseguem ser bonitas do seu jeitinho sem serem comparadas umas com as outras.
Não está muito na moda admirar o trabalho, mas é parte do que me faz gostar dessa paisagem labiríntica: tudo o que a vista alcança foi feito por mãos humanas. É uma paisagem feita de gente, circulando e habitando cada um desses espaços, mesmo que a gente não veja. Gente por trás das paredes, andando entre as árvores, dentro dos helicópteros, passando por túneis, andando pelo subsolo, fumando nas janelas. Para onde quer que você olhe: gente.
Uma paisagem feita dos dramas, do esforço, da sujeira e das cores de toda essa gente. Cheia de falhas, confusa, barulhenta e muitas vezes hostil, como somos também.
A vista de SP é como olhar para um espelho. Tem dias que você só vê os poros, o frizz, as olheiras. Mas tem momentos mágicos em que a luz bate de um jeito especial na fresta dos dias e você até pensa: uau, sou gostosa para caralho.
É tanta informação, tanta coisa acontecendo, que sempre tem algo novo para descobrir no horizonte. De repente, um prédio que você nunca tinha visto! Também pudera, aqui, se der bobeira, começam a levantar um prédio novo do seu lado e você que lide com as marretadas no ouvido. Esse cenário não para quieto. Um caleidoscópio sempre em movimento, que muda a depender de onde e quando se olha.
O mar está aí há milhões de anos. As rochas e montanhas vão continuar com mais ou menos a mesma aparência pelos próximos milhares de anos. Mas e uma cidade feita por humanos, cheia de construções incompreensíveis voltadas para pistas onde circulam veículos movidos a combustível fóssil? Esse sim é um cenário que tem tudo para durar pouco. Efêmero como um muro grafitado. Vamos apreciar enquanto existe o que arqueólogos do futuro definirão como um monumento ao absurdo!
São Paulo é a cidade que inverteu a posição das constelações. Se mal dá para vê-las no céu é porque as luzes são mais intensas aqui embaixo À noite, as estrelas mais visíveis são os pontinhos luminosos das janelas salpicados na escuridão. Dando zoom em qualquer um desses pixels de luz, você se aproxima de um universo inteiro: uma pessoa, seus problemas para resolver, seus desejos, as teias invisíveis que a conectam a outros pontinhos estendidos pela superfície dessa caótica placa-mãe.
Cada janela contém uma história, com alguém sendo protagonista de sua própria sitcom e, pegando distância, sendo nada mais que um figurante que mal aparece na imagem. Uma paisagem que engole, que nos situa na posição de minúsculos, desimportantes, meras formiguinhas. E, ao mesmo tempo, como parte de algo gigante e transitório, assustador e memorável, como é o movimento das ondas humanas, em sua orgulhosa e ridícula tentativa de alcançar o céu. Não é uma beleza?
“O que significa viver em um mundo onde você tem o poder de acabar com as espécies aos milhares, mas também pode sucumbir, ou mesmo morrer, por causa de um único filamento de RNA?”
— John Green, no livro Antropoceno: notas sobre a vida na Terra
Coisas que aprendi sobre São Paulo no meu tempo vivendo aqui:
Atravessar 20 km em São Paulo não leva o mesmo tempo que atravessar 20 km em Brasília.
Essa linda cor do céu provavelmente é poluição.
Aqui deve ter a maior concentração de pessoas com rinite alérgica da América Latina. Carece de fontes, mas deve ter sim.
Existem centenas de rios canalizados passando por debaixo dos nossos pés. Quando chove muito, os rios inexistentes na superfície alagam os pontos por onde costumavam passar.
Aqui em São Paulo o rio parece água parada e são as pessoas que se movem como correnteza.
Vai ver por isso o paulistano não gosta de quem fica parado do lado esquerdo da escada rolante. Interrompe o fluxo!
No segundo em que o sinal verde abre, se você não acelera, leva uma buzinada. A pressa é real.
Os pombos sobem escadarias, juro pra você, já não se incomodam em voar.
Você pode se vestir como quiser e andar na rua, ninguém liga. Ninguém liga para você no geral. Ligam ainda menos se você não tiver dinheiro.
Tá todo mundo fazendo cosplay.
Não existe uma São Paulo, e sim várias entrelaçadas. Vire uma esquina para cair numa realidade completamente diferente.
São Paulo não tem um só jeito de falar. Aqui você ouve gente falando em vários idiomas, em sotaques de outros cantos do Brasil e na diversidade de sotaques paulistas (que não se resumem a quem fala como o Luciano Huck). É a Torre de Babel, já bem disse Mano Brown.
São Paulo não são os prédios, o concreto e os carros, São Paulo são as pessoas, como me disse o Eric Novello.
Nunca fui impedida de colocar qualquer coisa em cima de uma fatia de pizza.
Mano é pronome de tratamento de gênero neutro.
A cidade pode ser grande, mas as bolhas continuam pequenas. Todo mundo em uma bolha se conhece, só resolve se ignorar na maior parte do tempo. Parece até Brasília às vezes.
Por falar em SP
A Gaía escreve sobre o que há de mais interessante na cidade na newsletter Paulicéia
Fotografia de uma família que chegou a São Paulo em 1952, depois de 13 dias de viagem em um pau de arara — encontre o Lula
Escalas
Macro: as imagens feitas em Marte por robôs podem ser consideradas fotografia?
Micro: o momento da morte de um organismo unicelular (cenas fortes)
Sobre ser importante
Lindezas nas profundezas
Arte-viva nas profundezas do oceano:
Leitura para ouvir enquanto assiste às cenas do vídeo acima em looping
Essa lula coberta de lantejoulas faz do oceano seu tapete vermelho
Internet tóxica
Como a extrema-direita têm dominado o Telegram
De tudo o que as pessoas podem ser, o que elas mais buscaram no Google este ano foi como ser uma pessoa fria
“A caixa de comentários é um caminho sem volta. Um faroeste sem leis. Um circo de horrores. O sétimo círculo do inferno, o castelo do Bowser, o abismo do Sonic, um buraco negro suspenso no espaço consumindo toda a luz ao seu redor. É o lar de Cthulhu.”
Em nome da preservação geral da sanidade, eu dizia em 2013 “Nunca leia os comentários”, mas hoje não sei se adianta mais. Não sobrou sanidade na internet.
A vista de São Paulo na capa do meu livro Bobagens Imperdíveis para atravessar o isolamento.
Enquanto não desaparecemos no espaço de partículas em decadência, podemos nos estender em direção ao outro para descobrir que não estamos sozinhos em nossos desejos de crescer ou em nosso medo da solidão.
Esta newsletter é sempre uma tentativa de fazer esse movimento. Fique à vontade para usá-la para puxar assunto:
Um beijo e até a próxima,
Aline.
Ler esse texto nesse momento de visita a São Paulo me deu uma fisgada no coração. Sinto saudades desse caos, dessa vista "zipada", de gente indo e vindo de todos os lugares, da dor de cabeça que tenho porque não consigo escolher um programa entre tantos incríveis pra fazer e, claro, dos amigos por todos os lados... de chegar nos lugares sozinha e sempre encontrar alguém conhecido. Ah, São Paulo, como te amo e seu texto me fez amar ainda mais. <3
Ou talvez a grande beleza de São Paulo seja quem escreve sobre a cidade... Porque seu texto está um pôr do sol!