Quando os franceses escolheram um mascote para representar as Olimpíadas de Paris, estavam pensando em revolução. Lógico, um dos maiores produtos de exportação da França! Talvez depois dos queijos, grifes de luxo, menáge a trois e filmes cabeça. Por isso a mascote apresentada não podia ser outra: a personificação do órgão feminino do prazer. Clitorita, como foi batizada pela zoeira implacável dos brasileiros.
Tá, eu sei que a mascote faz referência a um gorro historicamente associado à luta pela liberdade e aos revolucionários do século 17, etc etc, mas vê-la como um clitóris de sorriso simpático não muda seu significado principal, pelo contrário, apenas o reforça: o que pode ser mais revolucionário e radical do que esfregar na cara da sociedade uma mascote feminista, vermelha de excitação, evocando a liberação sexual feminina? Fico com esta versão, merci.
Ainda assim, sou contra transformar objetos em mascote. Isso só nos rendeu aberrações estéticas como o Dollynho, botijões de gás com bracinhos, um sanduíche Bauru com pés de tomate e o clipe de papel assistente do Word 97.
Clitorita ganha pontos por sair do óbvio e por ser ambígua o suficiente para virar meme, este pódio de visibilidade que toda peça publicitária, como é o caso de mascotes, sonha poder subir um dia. Mas ela também me faz pensar: porra, França, tanto símbolo icônico para escolher e você me vem com um chapéu? Eu poderia citar 120 símbolos mais franceses para ser o mascote dessas Olimpíadas:
uma baguete
um padeiro de bigodinho fino
o Ratatouille
um croissant
um queijo (certo, percebi que estou citando apenas comidas)
um gárgula (talvez assustador demais para vender pelúcias)
um caracol velocista, fugindo de virar escargot em um prato (droga, voltei para comida)
uma guilhotina (símbolo muito mais identificável da Revolução Francesa... mas não seria tão amigável, né?)
Tá, talvez o gorro não tenha sido má ideia.
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Se cornetada fosse esporte olímpico, o Brasil estaria bem na frente no quadro de medalhas. Enquanto os atletas dão tudo de si, resta a nós, enquanto torcida, criticar, zoar e ficar putos por regras que não entendemos muito bem. Somos um povo com tradição em pôr reparo. Não importa se você é Paris, não importa se você é um dos maiores atletas da sua modalidade, vamos achar defeito da sua performance e zombar da sua cara.
Por aqui, vou fazer o meu papel de me juntar às cornetadas e escrever uma breve análise sobre os mascotes olímpicos, desde que o primeiro foi criado para os Jogos Olímpicos de Inverno, em 1968, por uma designer chamada Aline Lafargue, que recebeu o job de última hora e teve apenas uma noite para criar o personagem. Alines sempre se lascando. Deu tempo de quê? De desenhar uma bola vermelha sorridente sobre esquis. Não reclama, o trabalho vai ter sempre a cara do prazo.
Desde então, cada país tem se esforçado para criar personagens capazes de traduzir o espírito da cidade-sede, inspirar simpatia, apresentar um pedaço daquela cultura e cumprir seu maior objetivo como mascote olímpico, que no fim das contas é vender boneco.
Primeiro, alguns dados gerais. Analisei a diversidade geral dos mascotes, entre todas as Olimpíadas de verão e inverno, e encontrei:
11 mascotes da família canídea, sendo a maioria URSOS
7 pássaros
4 felinos
4 roedores
5 humanoides
1 antílope, 1 peixe e 1 ornintorrinco
10 mascotes que são objetos ou seres não-identificados, incluindo dois cubos de gelo, um pedaço de ferro, um chapéu e uma bola de neve
A quantidade de mascotes que nos leva a perguntar "mas que diabo é isso" só não é mais preocupante do que a falta de diversidade da fauna olímpica. Por que tanto urso? Qual o problema do Comitê Olímpico com gatos? E os insetos? Nenhum representante do Reino Fungi?
As Olimpíadas são uma ótima oportunidade de abraçar os estereótipos da sua cultura ao apresentá-la para o mundo. Algumas cidades tentam fugir do óbvio e levar as pessoas pesquisarem fatos históricos na Wikipedia, como é o caso de Paris este ano, mas no geral o estereótipo é um lugar seguro, quentinho, com resultados simpáticos.
Por exemplo, a dupla de criancinhas vikings que representou a Noruega. O Pokémon que foi mascote de Tóquio. O urso da Rússia, Misha, que até hoje é reconhecido como símbolo de Moscou. O ornitorrinco de Sydney. O castor de Montreal. O panda de Pequim. Funcionam!
Mas nem sempre o lugar-comum entrega carisma, especialmente quando o país se apoia nos estereótipos da sua cultura que mais despertam o ranço do resto do mundo. Estados Unidos, estou falando com vocês.
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Los Angeles foi a que mais pesou a mão no clichê: o mascote, desenhado pela própria Disney, é uma mistura de Tio Patinhas com Tio Sam, resultando na pura encarnação da breguice patriota. Parece um mascote pronto para pedir votos.
Inicialmente, era para ser um urso, que é o animal espiritual da Califórnia, mas a Rússia tinha acabado de usar o animal como mascote nas Olimpíadas anteriores, de Moscou (aquela em que a música do Dschinghis Khan foi usada como vinheta na cobertura dos jogos) e até parece que os Estados Unidos vão aceitar seguir alguma tendência russa! Como se fosse uma ideia melhor meter um chapéu com a bandeira americana numa águia.
É de uma preguiça simbólica que me fez revirar os olhinhos.
Os estadunidenses têm uma tradição com mascotes esquisitos. Nas Olimpíadas de Atlanta, em 96, inventaram de fazer o primeiro mascote feito inteiramente de forma digital, para representar os avanços da tecnologia, mas resultou em um bicho que mais parece um vírus de computador.
O que é isso? Uma tocha olímpica carregando outra tocha olímpica? É um alien? Por que ele tem sobrancelhas elétricas? Me dá calafrios de pensar que esta é a versão melhorada, porque a primeira versão do mascote foi tão criticada que tiveram que refazer.
O nome foi escolhido por crianças em uma votação: ganhou Izzy, diminutivo de "Whatizit", que é literalmente como se diz em inglês "mano, que negócio é esse?" Eu fico com a pureza e com a sinceridade da resposta das crianças.
Izzy só não ganha a medalha de ouro de mascote mais esquisito porque Londres se esforçou em criar algo ainda mais escroto.
É tão feio que chega a ser intrigante. Por que um robô ciclope? É alguma referência a Doctor Who? Ou ao Grande Irmão, do romance 1984, escrito pelo britânico George Orwell? Lembra muito o mascote do Big Brother Brasil, afinal.
Se fizesse referência a essas contribuições britânicas à cultura pop, daria para perdoar. Mas a justificativa apresentada para essa criação me fez passar mal. O mascote é a representação do restinho do aço usado para construir o Estádio Olímpico. É um pedaço de ferro, sabe. De um olho só.
O pior é que este mascote foi o escolhido entre outras opções, que incluíam uma pomba, uma xícara de chá antropomórfica e um Big Ben com bracinhos e perninhas. A ideia de uma xícara de chá me parece bem mais divertida, mas o povo quis inventar moda, ser diferentão. Deu nisso aí. Às vezes o clichê é a melhor resposta.
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Não estou aqui só para gongar. Entre os mais legais, preciso destacar os mascotes das Olimpíadas de Inverno em Nagano, no Japão. São quatro corujinhas conhecidas como Snowlets, cada uma representando um elemento da natureza.
O estilo delas foi o que mais me chamou a atenção. Diferente da maioria das mascotes, que é desenhada em um estilo bem cartoon ou até 3D, as corujinhas parecem saídas de um livro infantil mais artístico. São coloridas, são simpáticas, são super versáteis! Eu teria as pelúcias.
O tigre de Seul, de 88, também tem um design gracioso. Ele representa um animal com papel importante no folclore coreano, embora hoje, especialmente no Brasil, tenha virado símbolo de jogo de apostas. Perdeu tudo: de símbolo de jogos olímpicos para garoto propaganda de jogos de azar. Pobre tigre.
O mascote de Munique está entre meus favoritos e nem é por bairrismo não! As Olimpíadas de 1972 foram os primeiros jogos de verão a terem um mascote oficial, e o animal escolhido foi um cachorro da raça Dachshund (palavra em alemão que significa literalmente "cachorro-texugo"). Também conhecido como doguinho rebaixado.
Ao mesmo tempo em que foge do óbvio, abraça um estereótipo: é um cachorro salsicha para representar a terra da salsicha! Perfeito, sem defeitos.
Waldi, o nome desse salsichinha, ostenta uma pose orgulhosa e curvas aerodinâmicas em um design elegante que também se diferencia dos mascotes cartunescos. Vai ver porque o responsável pela criação foi o mesmo designer que criou a marca da Lufthansa. O impressionante é que usaram a forma do cachorro para desenhar a rota da maratona dos jogos daquele ano.
Os designers tiveram a preocupação de não usar as cores vermelho e preto para evitar qualquer associação com o nazismo. O que resultou em um faceiro cachorro multicolorido, nas cores verde, azul e laranja.
Nesse vídeo, a designer Elena Winschermann fala sobre o processo de criação e conta que o mascote foi concebido, antes de tudo, como um objeto de design:
Guardei o melhor para o final e reitero que não é bairrismo! Mas o mascote das Olimpíadas do Rio é um verdadeiro esculacho.
Aquela vibe de "que bicho é esse?" também aparece aqui, mas para o bem. Meio felino, meio símio, o mascote brasileiro representa a diversidade da nossa natureza e ainda faz referência à arte brasileira, ao se chamar Vinícius. É uma criatura fantástica que poderia tranquilamente ser um dos personagens do desenho Hora de Aventura.
Mais do que um design fofo, solar, simpático, Vinícius também é um mascote com personalidade marcante. Boa praça, zoeiro, dono de um rabão e de uma malemolência invejável. Nenhum outro mascote no mundo manda um passinho como Vinícius.
Os criadores também conseguiram equilibrar bem o "abraçar o estereótipo" e o "fugir do óbvio". Não faltariam clichês para representar um mascote carioca: uma arara azul com chapéu de malandro, um coco verde usando havaianas, um pandeiro com bracinhos, e por aí vai. Mas conseguiram criar um mascote que tem toda a ginga carioca sem precisar apelar para os clichezões. Aprende, Tio Sam.
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A palavra "mascote" deriva da antiga gíria francesa "mascott", que originalmente significava "encanto" ou "feitiço". Era usado para falar de talismãs, de objetos para trazer boa sorte.
Em 1880, estreou na França uma ópera que fez muito sucesso: a comédia La Mascott. A peça conta a história de uma camponesa que é uma mascote, que traz boa sorte e melhora os negócios de quem quer que seja seu patrão... desde que permaneça virgem.
Talvez esta seja mais uma referência cultural que os franceses esconderam na Clitorita? Ne touche pas à ma mascotte! Só espero que brincar com a mascote durante os jogos não traga má sorte para ninguém.
Para qual mascote você daria a medalha de ouro?
Você pode ver todos eles neste link e me contar depois nos comentários:
Caraca, eu tô muito olímpica
Se o tema design nas Olimpíadas também te interessa, dá uma olhada neste site que encontrei: The Olympic Design Dot Com.
É baseado em um livro (em 2 volumes) que reúne a iconografia, a identidade visual, a tipografia, mais detalhes sobre a criação dos mascotes e do material gráfico produzido para cada edição das Olimpíadas modernas. No site dá para ver várias páginas do livro:
Já esta edição da newsletter
trouxe um apanhado bem legal com as animações usadas na Olimpíadas, inclusive versões animadas dos mascotes:Nos capítulos anteriores...
Ainda não recebi nenhuma reclamação por ter cantado no meio deste episódio de Bobagens Imperdíveis:
Bônus Track
Fui convidada pela Jana Viscardi para conversar sobre escrita e ficção na estreia do podcast em que ela entrevista escritoras, o Escrever sem medo! Estou chique, né? Vem ouvir:
Esta é a edição de número 150 de Uma Palavra! Obrigada pela companhia até aqui. Se gostou do que leu nesta edição, encaminhe o email para um amigo, espalhe por aí :)
A gente se encontra numa próxima edição.
Beijinhos,
Aline.
Obrigado por mostrar os outros mascotes, agora passei a amar ainda mais o Vinícius. É impossivel pensar nele sem lembrar dele lançando um passinho. E o que mais gosto é que ele se chama Vinícius. Sei que é homenagem, mas é tipo você descobrir uma estrela e batizar ela de Cláudia.
A cena do Vinicius desfilando com um vestido em referência à Gisele mora na minha cabeça e nem precisa pagar aluguel. Ele é reizinho demais, adoro ❤️