A categoria “histórias sobre personagens que ficam presos em um looping da desgraça”, com filmes como Feitiço do Tempo e séries como The Good Place e Russian Doll, acaba de ganhar mais um representante com o curta Two Distant Strangers.
Diferente de muitos exemplares cômicos desse tipo de narrativa, este filme usa o recurso do loop temporal para tratar das tragédias reais que se repetem enquanto a sociedade é atravessada pelo racismo, e por isso está cheia de imagens de violência policial que podem ser perturbadoras.
O protagonista, interpretado pelo rapper Joey Bada$$, fica preso no mesmo dia em que sua vida se cruza de forma inescapável com a de um policial branco que insiste em abordá-lo. Não importa quantas vezes o ciclo se repita, as coisas sempre acabam mal para o homem negro. Cabe a ele tentar encontrar formas diferentes de agir para ver se consegue mudar o resultado.
Enquanto a estrutura da ficção geralmente promete um alívio, alguma resposta para o conflito levantado pela trama, este filme deixa o gosto amargo de que, na realidade, ainda não conseguimos superar esta repetição.
Sonhar com vacina e acordar no Brasil de Bolsonaro é outra repetição cruel. Especialmente quando os dias se tornam todos iguais, enquanto confinados na tentativa de sobreviver ao vírus, ao presidente genocida, ao embaçamento mental generalizado e ao surto de burrice que, juntos tal qual um megazord do apocalipse, ameaçam varrer os brasileiros do mapa.
Uma coisa que os dias todos iguais ajudam a revelar, assim como em Two Distant Strangers, são os dispositivos que nos mantêm presos à mesma repetição. O que é que sempre nos faz cair na mesma vala? Pode ser a vala do erro coletivo ou pessoal, tanto faz.
É como acordar todo dia e de novo ver uma pessoa escrota qualquer ganhar relevância a ponto de se tornar uma figura influente porque — e lá vamos nós — fomos mais uma vez trouxas de cair no golpe do clique da indignação que dá destaque a esse pessoal, porque a gente não aprende.
Por que a gente sabe que dá ruim e ainda assim tenta de novo, bate a mesma tecla esperando que vá ser diferente?
Não é como se errássemos de propósito, porque gostamos de insistir no que dá errado, ou porque queremos nos tornar especialistas no erro e errar de forma cada vez mais efetiva, mais profissional. Há os que tentam muito, mas vai além disso. Se a repetição cagada continua a acontecer, é porque não arrumamos outro jeito de lidar com a situação.
Vivemos a mesma história várias vezes até enfim conseguir aprender algo com elas. O problema é o tempo que isso leva.
As máquinas já aprendem muito mais rápido do que qualquer um de nós. Talvez porque sejam capazes de repetir maior número de loopings sem sofrer, cair no choro e desistir ao sair quebrando tudo.
Estava assistindo a um vídeo mostrando o processo de aprendizado de uma inteligência artificial se aperfeiçoando no jogo de corrida QWOP. A máquina precisa rodar inúmeras tentativas para aprender, com base em sua experiência, ou em dados coletados de jogadores recordistas, qual combinação de teclas pressionar, e em qual tempo, para conseguir equilibrar o corpo do boneco e levá-lo até o final da pista de corrida.
A inteligência artificial conseguiu não apenas completar o percurso, como depois se tornou recordista mundial, fazendo isso em menos tempo:
Em outro vídeo, um programa de computador é colocado para aprender do zero a jogar Super Mario World. O algoritmo que joga esse Mario funciona com um modelo matemático que simula o processo de evolução biológica: a cada “vida” do Mario — a cada jogada — o computador responde de forma diferente aos obstáculos e inimigos dispostos no caminho, e consegue ir até determinado ponto da fase.
Combinando as jogadas onde o Mario conseguia ir mais longe, o computador aprendeu a combinação e sequência de movimentos necessárias para avançar mais, até conseguir a jogada onde desvendou a melhor forma de completar a fase:
O algoritmo joga de forma graciosa? Não. O Mario controlado pelo computador parece estar bem de saúde enquanto atravessa a fase? Também não. O importante é que a máquina aprendeu com todas as jogadas falhas a encontrar os movimentos que conduzem à saída.
Esse programa de computador não inventou esse método, não tirou isso do nada: ele apenas demonstra de forma didática o complexo processo de evolução que já está em curso na natureza, que está em curso em nós.
Claro que os problemas que temos para lidar são de um nível de dificuldade muito maior do que passar de uma fase do Super Mario World. Problemas que vão levar gerações para serem resolvidos, porque seguimos repetindo os erros dos que vieram muito antes de nós.
Acordar mais um dia para errar de novo. Parece até maldição. Mas ficar presa em um looping pelo menos serve para fazer das repetições um aprendizado: tentar entender o que querem dizer as narrativas que insistem em se repetir. Quem sabe assim aprendemos a encontrar a saída do buraco?
Mais uma da série conversas que me salvaram na quarentena: ouvir as histórias da misticona e maravilhosa Madama Br000na neste episódio de Valek Conversa!
Demos uma volta no passado, uma espiadinha no futuro, e olhamos para o palco cósmico das estrelas. Tarô, teatro, personas de internet, troca de cartas, amigos metaleiros, mitologia grega, astrologia, máquina do tempo: vem ouvir o que isso tudo tem a ver com criatividade!
Espero que goste, eu me diverti demais e saí ainda mais apaixonada pela Br000na:
Escrever ficção é um exercício constante de humildade. Quanto mais tempo passo escrevendo, mais percebo o quão pouco é possível de fato inventar.
Por um completo acaso, minhas andanças na internet me levaram a conhecer uma história real muito parecida com algo que estou escrevendo. Costuma ser o momento em que tenho que repensar tudo. Mudar a direção? Investir nesse caminho mesmo assim? Exagerar mais na fantasia? Com quais outras ideias posso misturar para me distanciar das semelhanças? Ou desistir de vez e partir para outras ideias?
Só acha que chegou a uma ideia realmente inédita quem pesquisou pouco.
Alguém já fez, alguém já pensou, alguém já chegou antes, alguém já contou algo parecido. Isso não significa que somente aquilo nunca antes feito mereça ser feito. O inédito, às vezes, está na forma de contar, na combinação inusitada de elementos, em apresentar algo conhecido sob outro ponto de vista.
Quase impossível mesmo para quem é escritor sair por aí dizendo que inventou qualquer coisa do zero, especialmente quando a realidade já está cheia das maluquices que eu só esperava encontrar — ou criar — na ficção.
Coloquei meu site novo no ar!!! Ihaa
Estava precisando atualizar para colocar os livros que saíram em 2020 — Cidades afundam em dias normais e Bobagens Imperdíveis para atravessar o isolamento — e atualizar os campos do podcast e da newsletter. Aproveitei que estava com a mão na massa para dar um tapinha geral no visual.
Vem me fazer uma visita, conhecer a nova decoração! Sua presença é sempre bem-vinda nos meus cafofos digitais, assim como no meu e-mail ou nos comentários desta newsletter!
Se você chegou nesta edição por algum caminho obscuro da internet, você pode assinar para receber as próximas edições grátis no conforto do seu e-mail:
Até o próximo looping!
Um beijo,
Aline