Estou cada vez mais convencida da hipótese de que vivo em uma simulação. Às vezes as coisas se encaixam de uma forma perfeita até demais. Ouço um episódio do Tecnocracia e levo um susto quando percebo que estão falando sobre "Esperando Godot", livro que eu tinha acabado de ler há poucos dias. Olho para os lados, em busca da quarta parede para eu quebrar com a minha cara de espanto.
"Esperando Godot" é uma peça de teatro escrita por Samuel Beckett, encenada pela primeira vez nos anos 50. O título diz tudo: é a história de dois caras esperando por um terceiro cara, que nunca aparece. Por que precisam esperar? Não se sabe. Quem é Godot? Ninguém faz ideia. Absurdo é como tendem a classificar as histórias que carecem de explicações; mas veja se essa não é a definição purinha do que é a realidade.
Dois coitados debaixo de uma árvore. Quem aparece não é quem eles esperam. O tempo se arrasta, uma repetição após a outra. Descalçar a bota, tirar um cochilo, conversar sobre o poder de um chapéu para fazer pensar, falar sobre a morte, levantar as calças que escorregam para o chão. Adiar o suicídio, só pra ver se Godot chega.
No final do episódio do podcast, Guilherme Felitti apresenta uma interpretação de que Vladimir e Estragon na verdade se deram bem pelo que não apareceu. "Frustradas suas expectativas, eles finalmente estariam livres para viverem suas vidas, mesmo com aquela dificuldade para se mover."
Esse podcast chegar em mim logo depois de eu ler esse livro enquanto espero debaixo de uma árvore só pode ser um recado do Universo.
Sim, tenho estado meio mística. No ponto de começar a acreditar que estou exatamente onde deveria estar, e de que, se algo não aconteceu, é porque não era para ser. O que posso fazer é o meu papel. O de tentar, insistir, feito um pombo dentro de um experimento científico fazendo de tudo para acionar o mecanismo que vai liberar um petisco, e seguir recebendo os mesmos nãos, elaborando justificativas cada vez mais doidas para a ausência de guloseimas.
Vai ver faz parte da experiência, não? Anotar meu comportamento diante da frustração. "E assim o pombo se tornou místico", o responsável pela simulação em que estou inserida vai anotar em um relatório, nalgum lugar.
ESTRAGON (levantando-se) Nada acontece, ninguém vem, ninguém vai, é terrível.
— Trecho de "Esperando Godot"
Sabe aquela sensação de ir a um restaurante e seu prato não chegar nunca? A entrada, pão com uma pasta de berinjela de lamber os beiços, consegue segurar a onda por um tempo. Mas a fome aperta. A impaciência vem. Toda vez que a garçonete entra no salão, traz um prato que não é o seu. Pessoas que chegam depois de você começam a receber os pedidos delas. Nada do seu. Elas pedem a conta e vão embora. A garçonete esqueceu do seu pedido? Aconteceu um problema na cozinha? Sua cabeça se revolve em especulações para justificar aquilo que você não consegue ver. Será que o seu prato ainda vai vir?
Se o restaurante não for beckettiano, o prato eventualmente vem. Na vida, a mensagem pode não vir. Ou até pode vir, mas dizendo algo bem diferente do que eu esperava. Espero por coisas grandes acontecerem, mas elas ficam travadas na esteira dos acontecimentos, em algum ponto fora da minha vista. Fico frustrada como se isso fosse resultado de algo que deu errado, mas é simplesmente a natureza da existência. Godot não virá.
O projeto que não encontra interessados. O afeto que não encontra reciprocidade. O esforço que não encontra reconhecimento. A mensagem que não encontra resposta. O que não acontece talvez seja o melhor que poderia ter acontecido naquele momento. O que não acontece deixa um espaço vazio. É bem diferente do que eu esperava, mas recebo como um presente. O vazio é uma espécie de liberdade. Dá para dançar dentro dele. O nada, afinal, pode ser alguma coisa.
"As lágrimas do mundo são em quantidade constante. Para cada um que irrompe em choro, em outra parte alguém para. Com o riso é a mesma coisa. Não falemos mal, então, dos nossos dias, não são melhores nem piores do que os que vieram antes. Não falemos bem, tampouco. Não falemos. Verdade que a população aumentou".
— Samuel Beckett, "Esperando Godot", na tradução de Fábio de Souza Andrade.
Falando mais que o homem da cobra
A realidade já é bem absurda, se você prestar atenção. Falei disso numa entrevista para a Bia Montenegro, do Delirium Nerd.
Ainda no tema do insólito, conversei com o Eric Novello sobre o fantasma das ausências na estreia do podcast dele, o Encruza Criativa.
O mago dos podcasts, Cris Dias, me convidou para o Boa Noite Internet e falei um pouco sobre viver de escrita.
Já com o Rodrigo Ghedin no podcast Guia Prático, do Manual do Usuário, falei sobre newsletters e o que mudou nessa cena com o Substack no jogo.
Aproveitei para criar uma playlist juntando todos os episódios de podcasts que participei como convidada. Já são mais de 16 horas de conversas!
Sou feita de quê
É um contorcionismo mental absurdo tentar articular o pensamento em outro idioma. Sempre vem a frustração de não conseguir transmitir exatamente o que eu queria dizer. O que, pensando bem, também acontece com frequência em português.
Eis que escrevi um texto em inglês para ver onde palavras de uma outra língua poderiam me levar. Acabaram me levando para refletir sobre pertencimento, e o que o lugar de origem pode dizer sobre nós.
Você pode ler o texto completo aqui. Vou adorar saber o que você achou.
O que a pergunta "de onde você é" faz você pensar? Me conta nos comentários?
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Beijos de quem espera,
Eu amo demais “Esperando Godot” e a leitura do seu texto veio como uma estrela cadente, em que apertei os olhos, fiz meu pedido e ele foi atendido quando terminei de lê-lo. Eu estava esperando Godot, mas você me fez que o nada que não aconteceu é o melhor que poderia ter acontecido agora. ❤️
quando me perguntam de onde sou, internamente me perco pensando se falo de onde nasci, da última cidade que morei ou se explico o breve percurso das minhas mudanças interurbanas... sinto que em cada lugar pertenci de uma forma distinta, num tempo distinto e todos me compõem de algum jeito.