Alguém gritou GOL da janela (devia ser jogo do Palmeiras, sempre é algo com Palmeiras). A vizinha de outro prédio entendeu outra coisa, foi catar a panela e começou a gritar um “Fora Bolsonaro!” fora de hora.
Errada não está. Não acho errado gritar da janela, precisamos normalizar e ressignificar o grito na janela, especialmente quando vivemos em confinamento. Você pode até me dizer “peraí, depende” e poderíamos pensar em quais situações seria aceitável ou não gritar na janela, como hipotéticos legisladores do urro.
Em linhas gerais, o grito na janela socialmente aceito é aquele que pertence a mais de uma pessoa, aquele que convida para gritar junto. O grito que é confortável porque todos estão sincronizados no mesmo sentimento, no mesmo assunto. Estão assistindo à mesma cena: um jogo de futebol, um desastre político e humanitário, os últimos segundos do ano.
Já o grito solitário é incômodo porque não se sabe o que o motivou. Quem ouve fica de fora do sentimento e, de fora, o grito perde o significado, a força catártica e terapêutica, tornando-se apenas uma agressão sonora.
Por exemplo:
Uma vizinha começou a gritar que não aguenta mais, que está cansada, entre outras palavras indistinguíveis de desespero. Como alguém que já esteve nesse lugar, inclusive gritando as mesmas palavras, respeitei demais. Solta mesmo, solta tudo.
Cheguei perto da janela, na miúda, para tentar identificar (sem sucesso) a proveniência dos gritos. O que vi foram os outros vizinhos também na janela, tentando fazer o mesmo, mas fingindo que não. Climão geral.
Talvez estivessem calados mais por empatia do que por irritação com o barulho na vizinhança. Talvez porque numa situação dessas o que dá para fazer é sincronizar na mesma atenção silenciosa, sendo ela de reprovação ou não. Mas eu aposto na curiosidade. Pegar uma fofoca pela metade é de enlouquecer.
Gritar pode não resolver nenhum problema, mas e daí? Pelo menos libera um pouco do sentimento reprimido aí dentro, seja ele qual for. Se não quiser incomodar os vizinhos ou expor sua intimidade, a dica é: espere a hora das panelas, sincronize com os vizinhos e solte tudo. Urrar pela janela é autocuidado, minha gente.
Um ano de pandemia é tempo o suficiente para você se tornar uma pessoa completamente diferente; por outro lado, nem esse tempo é capaz de mudar outras coisas.
Feito os panelaços noturnos que continuam com o mesmo vigor do ano passado, motivados pelo ódio ao pequi roído que nos governa. O mesmo panelaço do qual eu falava lá no começo da segunda temporada de Bobagens Imperdíveis — e olha onde viemos parar outra vez, depois de mais uma volta ao redor do Sol.
Sou tarada em ver processos, bastidores, making of. Ver gente que faz fazendo. Estava louca para assistir ao documentário com o processo do cineasta e animador japonês Hayao Miyazaki, que está disponível para assistir online, e eis que finalmente o fiz.
O documentarista começa a acompanhar Miyazaki em seu processo de criação do filme Ponyo, mostrando que por trás das cenas good vibes e dos personagens fofos de suas animações, há um criador ranzinza, surtando com a pressão dos prazos, tentando dar algum sentido aos esboços espalhados pela parede, enquanto fuma um cigarro após o outro.
Fiquei espantada em como o processo de Miyazaki é artesanal, com tudo feito à mão pelos animadores e redesenhado pessoalmente por ele. A equipe já começa a desenhar e animar enquanto ele está pensando no que vai acontecer no final da história! No que resulta em um Miyazaki desesperado em terminar os storyboards a tempo para passar para os animadores, sem estourar demais o cronograma de produção. É muita vontade de trabalhar feito um desgraçado.
É bom demais ver que mesmo grandes criadores também são gente como a gente: chegam naquele ponto de não aguento mais, se perdem, ficam em dúvida se vão conseguir superar seus trabalhos anteriores.
Se até o Miyazaki surta no processo e cria coisas belas mesmo sendo um cuzão com o filho e com os funcionários no meio desse caminho de exigir um trabalho perfeito, significa que é possível fazer boa arte apesar de nossas limitações, vícios e falhas de caráter.
Isso traz a arte para mais perto, para o nosso alcance, tira aquela aura mística e sobrenatural das idealizações. Sempre bom lembrar que arte é feita por gente de carne, que envelhece, fica doente, que vive e que morre, como eu, como você.
Na guerra, as pessoas não têm escolhas. É uma época em que as pessoas se separam.
– Hayao Miyazaki
Donos de gatos nunca ficam entediados.
Favor não confundir culpa com responsabilidade.
Sobre ser uma pessoa tarada em entregar perfeição.
No sétimo episódio de Valek Conversa, chamei o escritor Fábio Kabral para uma conversa que passou pelas várias faces da figura do herói.
Ele contou histórias envolvendo Cavaleiros do Zodíaco, Brizola e Abdias do Nascimento, games, mitologia africana, teatro, heavy metal, flechas simbólicas, afrofuturismo e altas revelações sobre construir mundos fantásticos. Vem ouvir!
Sempre quero ouvir o que você achou dos episódios e das edições desta newsletter. Você pode responder a este email, me marcar nas redes sociais ou aproveitar que neste espaço novo dá para escrever comentários! Só clicar nos botões debaixo do título.
Até o próximo sábado de manhã, quando poderemos entrar em sincronia novamente.
Um beijo,
Aline.
Olá!
Vim buscar minha dose matinal da Palavra pelo link que você deixou no Twitter, hoje o correio não passou na minha caixa e entrada, mas o que vale é poder ler você tomando meu chá de camomila pensando nos gritos que gostaria de dar, mas ainda não juntei coragem... A realidade fica mais dificil de ser enfrentada quando não tem você nas manhãs de sábado. ❤❤❤
Mulher, parece que eu tô num bate papo contigo toda vez que leio uma newsletter... leio em voz alta para a família toda: marido, meninos e cachorro. A gente se surpreende e se diverte juntos com suas palavras. Obrigada 💖
Ps: ainda vou comprar seu livro. 😁