Aline,
sabemos que você vai voltar aqui quando 2022 for uma memória embaçada. Que é para isso que você faz tanto registro em palavras. Para estar aí e ao mesmo tempo aqui, os dedos no teclado, sem saber como o texto vai terminar.
Convenhamos que ninguém precisa da sua lista de melhores qualquer coisa do ano mais do que você mesma. Para se ver nesses pedacinhos do que te preencheu. E então reconstituir seus passos, como que para reencontrar algo que perdeu no caminho. Mas o que passa por nós não se perde. Continua aí. Só deve ter virado outra coisa. Olha direito.
É no fim do ano que se abre esse portal para visitar o passado e o futuro simultaneamente, um breve momento em que você consegue enxergar o que parece invisível no escorrer dos dias.
E então você espera por essa fresta para poder fazer a viagem, como se esperasse na plataforma por um trem que passa uma única vez. Rever cenários conhecidos passando em velocidade pela janela é uma forma de ver algo novo. Sem tantos detalhes, tantas texturas, porque já passou. Em forma de borrão, até as partes mais sofridas do cenário se tornam uma bela paisagem.
Aposto que você já sabe melhor do que eu a afrouxar os dedos em torno de tudo com o que nos importamos. Porque tudo precisa passar, queridinha. E assim perceber que aquilo o que procuramos no final do ano ao visitar esse portal está presente em todos os outros dias.
O tempo não está à sua frente, o seu tempo não passou. O tempo está do seu lado! Como esteve o tempo todo. Que loucura, né?
Bem, espero que goste de se lembrar da seleção do que nos marcou em um ano tão cheio de coisas bonitas. Mas me faça um favor e continue criando memórias. Ainda não acabou!
Como esse ano te parece daí?
Mit lieben Grüße,
Aline de 2022.
"Aquele que não revela suas influências e amores é um covarde"
— Henri Matisse
Melhores leituras
💎 Virginia Woolf consegue toda vez. "Veja o que é possível fazer", ela me diz, e me pega pela mão e me mostra a mágica da literatura. Mrs. Dalloway é uma tapeçaria de personagens: me aproximo e vejo os detalhes da costura de cada um, as palavras que não são capazes de dizer, os desejos que os movem; me afasto e vejo a malha do tempo, os desencontros, o terror da guerra, as terríveis horas. O fim, às vezes, está escondido no meio do livro.
Mas… por que ela de repente se sentia, sem motivo aparente, desesperadamente infeliz? Como uma pessoa que derruba uma conta de pérola ou diamante na grama e separa as folhas altas com muito cuidado, deste ou daquele jeito, e procura aqui e acolá em vão, e por fim a espia ali nas raízes, assim ela vasculhava uma coisa após a outra.
💎 Perder-se numa floresta gelada na Suíça. Ver o demônio pairando sobre a neve. Não, o Mal não está ali, mas do lado de dentro. Pode ser qualquer um, está por trás de rostos insuspeitos. Uma bomba precisa de muitas mãos para ser acionada. Mãos que depois se estendem, procurando ajuda. Uma tristeza infinita foi a leitura que me caiu no momento certo. Que livraço o Antônio Xerxenesky escreveu, que livraço.
O paciente, um sobrevivente de Dachau chamado Theodor, foi admitido na clínica por causa de um pavor terrível do escuro cuja origem ninguém descobria. Ezra, que assumiu o paciente depois desse episódio, foi perspicaz e logo encaixou as peças: a oração que Theodor repetia em transe, a mais central da prática do judaísmo, é dita cobrindo os olhos, ou seja, no escuro. Ela pode ser traduzida da seguinte forma: "Escute, comunidade, o Eterno é nosso Deus, o Eterno é Um." (...) O Sh'ma, mais do que uma declaração de monoteísmo, afirmava que tudo é Um, que tudo no universo é parte de Deus, e aquele homem não conseguia aceitar que as pessoas que mataram sua família e que quase exterminaram seu povo também tivessem sido criadas à imagem do mesmo Deus.
💎 Fim iminente da humanidade, uma das leituras mais refrescantes do ano, quem diria. A vingança de Gaia propõe a polêmica hipótese de que a Terra, em vez de algo passivo, sujeita ao que fazemos com ela, seja um organismo vivo potente, com capacidade para se regular e continuar a abrigar vida, seja ela qual for, um trabalho que vem fazendo muito bem há cerca de um terço da duração do Universo. Um livro cheio das ideias provocantes de um cientista que há décadas vêm avisando sobre mudanças climáticas e que gostava de lembrar que a vida humana na Terra poderia estar como ele, com os dias contados. James Lovelock deixou a existência este ano, no dia de seu 103º aniversário.
Qual a utilidade de suas palavras para os sobreviventes de uma enchente ou fome futura? Quando estes as lerem num livro salvo dos escombros, aprenderão o que saiu errado e por quê?
Melhores filmes
💎 Vortex, de Gaspar Noé: uma belíssima demonstração da segunda lei da termodinâmica, em que tudo tende a se desgastar, decair e se tornar mais e mais desordenado. Esse caos crescente é um casal de idosos atravessando a doença, o esquecimento e a proximidade da morte. As drogas estão lá, como se espera de um filme de Gaspar Noé; as drogas e o irreversível fim.
💎 The Sacrifice, de Andrei Tarkovsky, foi um dos poucos filmes que me fez recorrer àqueles vídeos de "explained" depois de assistir. Fiquei completamente WTF das ideias. O mundo vai acabar numa explosão nuclear e um crítico de teatro está disposto a sacrificar tudo para evitar que isso aconteça. Eu precisava de um filme teatral como este e não sabia. Foi o último de Tarkovsky. O diretor morreu de câncer pouco tempo depois de completar as filmagens.
💎 Pinocchio, do Guillermo Del Toro, completa a minha lista de filmes sobre idosos sofrendo com a realidade da morte. Puxa, mas o que pessoas maduras podem encontrar numa historinha infantil já contada um milhão de vezes? Magia. Del Toro fez poesia com um boneco de madeira e um punhado de areia azul. Deu vida a criaturas fantásticas, abriu espaço para o assombro e para o riso, fala com a criança fascinada que há em nós, ao mesmo tempo em que fala de inadequação, luto, fascismo e da teimosia, do esforço monstruoso necessário para concluir algo que faça brilhar luzinhas no mundo.
Melhores séries
💎 O absurdo está de parabéns na terceira temporada de Atlanta. Foi além, pegou minhas expectativas e as levou para se perder nas ruas de Amsterdam. Fantasmas, influencers, canibalismo, baguetes ninjas, e Darius nem foi o personagem mais biruta desta estação. Um ano com duas temporadas de Atlanta é um ano bom. Não vi a última, mas tenho certeza que vou gostar. Na verdade vi, em algum momento que virá, e vai fazer sentido falar das duas temporadas como a melhor coisa que vi, que estou vendo, que vou ver. A linearidade do tempo é uma ilusão.
💎 Foi bom voltar a sonhar, a falar de sonhos, a ver a Morte assim, mais amável, uma boa amiga. Recebi The Sandman como um presente. A Aline adolescente que devorou os quadrinhos e encontrou refúgio no Sonhar de Neil Gaiman iria adorar. É diferente, que bom. Os quadrinhos continuam lá, perpétuos, para eu voltar sempre a eles. Agora, tenho lugares novos para visitar. O episódio bônus com Calliope e o Sonho de Mil Gatos com certeza vai ser um desses sonhos recorrentes.
💎 O luto parece ser o grande destaque de 2022: está presente também em The Bear. Uma cozinha frenética, um negócio à beira da falência, um chef caindo aos pedaços depois da morte do irmão. Processo, sistema, arrumar formas de se comunicar melhor, criar o donut perfeito. Cheiro de comida boa, temperada com muita tensão, tiro pra cima, Xanax pra criançada. Italiano é muito intenso, né?
Melhor Pedro Pascal
💎 Carente, bobo, implora por sexo, anda pra lá e pra cá com pijaminha e roupão, bem desleixado, faz dancinha pro TikTok, precisa de reanimação cardíaca. Pedro Pascal está do jeito que gosto em The Bubble. Hollywood é ridícula, inclusive por filmes de mais de 2h para a indústria rir de si mesma. Como não rir junto, com Pedro Pascal no meio dessa pataquada entregando TUDO?
Melhores músicas
💎 Don L fez jus ao título de Favorito da sua Favorita. Tem muita densidade o que ele escreve, música que se ouve como um livro, ou como uma floresta, onde os sons te engolem, cheios de camadas. Auri sacra fames traz um sample maravilhoso de O ouro e a madeira, de Ederaldo Gentil, e o brilho dos versos de Tasha & Tracie. A música me levou a esboçar um texto sobre minha fome do ouro. Talvez um dia ainda chegue por newsletter, ou talvez vire algo diferente. A ver.
💎 Difícil escolher uma só da Flora Matos para minha lista, mas Finge que me odeia representa. Deixa recado. Esse ranço aí não engana ninguém. No fundo, é uma forma torta de admirar, é o amor de quem não tem coragem. Não bate palmas, mas tá sempre na plateia. É curioso esse fenômeno, não? Finge que me odeia, mas sonha comigo: a voz é de Flora, mas poderia ser Freud falando.
💎 Por motivos de personagem, vou precisar elencar uma sequência indivisível para mim nessa lista de melhores: Asaf Avidan me guiou pelos labirintos da criação com seu novelo em The Labyrinth Song, veio Jorge Ben Jor e povoou meu imaginário de seres cósmicos em Errare Humanum Est, então Nación Ekeko trouxe a voz de Mercedes Sosa para que eu insistisse Como la Cigarra. A Aline que ler isso depois vai saber no que deu essa seleção.
Melhores artistas
💎 E daí que morreu há muito tempo? A Baronesa Elsa Von Freytag merece um espaço nos destaques do ano por sua vida fascinante, por ver arte literalmente em meio a escombros, por suas obras que já eram punk muito antes de existir o punk. Ela ensina a dizer foda-se para o que estão esperando de você. Foda-se para o que o mercado quer. Foda-se ser aceita por esse grupinho aí. Foda-se para o que o algoritmo favorece. Que se explodam as regras!
💎 Há de se respeitar uma artista que usava cabeças humanas decepadas por guilhotinas como referência para suas criações hiperrealistas. Mais do que alcançar a excelência em sua arte, Marie Tussaud tinha visão de negócios. Fez das suas esculturas de cera um império do entretenimento. Mostrou que é possível ser bem-sucedida e gravar seu nome na história mesmo depois de encontrar pelo caminho picaretas querendo se aproveitar do seu trabalho.
Melhor rede social
💎 Busquei, busquei, e ainda não encontrei espaço na internet mais aconchegante do que o fantástico grupo dos Valekers. Há muita troca de conhecimento, de cartinhas, de figurinhas top, conversas sobre filmes de Natal, gente tocando violão, pintando aquarela, trocando receitas de café cubano e cuscuz de arroz, adivinhando o nome de livros a partir de capas 100% pixeladas, oferecendo ajuda, escuta, incentivo, sem falar nos encontros do clube do livro, onde a literatura se transforma em pretexto para conversarmos sobre a vida. Antes de sair do Brasil, tive a alegria de encontrar com uma parte dessa turma para um piquenique numa tarde muito gostosa. Será que sabem como a companhia deles fez diferença nos meus dias?
Melhor evento
💎 Restaurou minhas energias estar entre outros escritores para falar de algo que amo ler, que amo fazer: newsletters. O Texto e o Tempo foi um evento organizado e produzido por uma galera que faz e pensa newsletters autorais no Brasil hoje, bonde puxado por
. Pude ouvir autores das minhas newsletters favoritas, aprendi sobre questões técnicas, refleti sobre modos de fazer, assisti a oficinas inspiradoras, conversei com autoras que admiro demais, compartilhei muito do que aprendi fazendo, conheci autores muito daora, fiquei com gosto de quero mais. E por ser difícil falar de tanta gente que marcou minhas leituras esse ano, deixo aqui a lista das newsletters que tenho mais satisfação em ler.Melhor jogo
💎 Não, certamente não foi feito para minha faixa etária. Ainda assim, Sky: Children of the light me encantou para muito além das águas-vivas e arraias voadoras. Um jogo espírita? Te transforma numa criança alada que sai pelo mundo procurando espíritos, aprendendo os gestos de seus ancestrais para se comunicar com os outros jogadores. Cada uma de suas ações serve para ajudar os outros. Gentileza. Estamos todos na mesma jornada. É preciso morrer muitas vezes para evoluir, mas a morte aqui nunca é o fim. Chorei sim, chorei muitas vezes. A beleza dos cenários e a delicadeza da trilha sonora é que são uma apelação.
Melhores escritos
💎 Das coisas que mais gostei de escrever em 2022 está um conto inédito que será publicado pela Aleph na coletânea de ficção científica feminista Irmãs da Revolução. Essa história poderá ser lida ano que vem, junto de contos de algumas de autoras que mais me inspiram, como Octavia Butler e Ursula K. Le Guin. Is this real life?
💎 Tenho muito orgulho do trabalho que fiz na terceira e última temporada do meu podcast Bobagens Imperdíveis. Passei o ano escrevendo essas histórias, deixando que minha curiosidade me conduzisse por tudo o que não era óbvio. Escrita de desvendar o mundo, de costurar pontos distantes, do tipo que mais me alegra fazer, por mais desafiador que seja. Agora, o trabalho é do tempo. As histórias vão chegar nas pessoas no momento certo.
Quero te conhecer
Faz uns anos tenho o costume de enviar uma pesquisa para conhecer melhor quem me lê ou me escuta. Não escrevo para números, para taxas de abertura, para curvas num gráfico. Escrevo para pessoas. Então gosto de abrir essa janela em forma de perguntas para saber um bocadinho mais de você, tornar mais humana essa relação entre quem escreve e quem lê.
Você pode me emprestar uns minutinhos e responder à pesquisa? Só clicar:
Pela sua companhia este ano, muito obrigada. É um enorme privilégio chegar na sua caixa de entrada, poder ser lida com tanta atenção.
Volto em janeiro com mais um texto da série Crônicas Alemãs e muitas outras palavras.
Boas festas e bom descanso!
Um beijo,
aaaaa amei essa despedida de 2022! uma tristeza infinita também esteve no meu top livros de 2022.
beeeijo!
nossa, essa edição tá muito mara... morri com essa lindeza de intro!!! E cliquei em quase todas as indicações.... obrigada por compartilhar! E gostei da ideia da pesquisa sobre os leitores... eu cheguei a esboçar uma e nunca terminei, mas é um ótimo momento já que quero dar uma boa reformulada na Espiral. Bjs