Não há truque para engolir a espada? Não há, descubro perplexa.
Não há ilusão de ótica, nem espada retrátil, nem mágica verdadeira. Não, a lâmina passa rigorosamente por toda a extensão da garganta. Se há truque, é a habilidade muscular de acomodá-la nos espaços vazios do lado de dentro.
Por que alguém pensou que se expor a esse risco tremendo podia ser uma forma de arte? Arte ou esporte? Já foi aceito como modalidade olímpica? Duvido muito. Mas, um dia, alguém com a quantidade exata de tédio, autoconfiança e disposição para morrer teve essa ideia. Imagino o tempo necessário para aperfeiçoar a técnica. Não há muita margem para erro nessa profissão.
Qualquer vontade de gritar, de tossir, de vomitar, deve ser suprimida. Não há espaço para medo, nem para duvidar de si. Qualquer hesitação, um reflexo involuntário na hora errada, e o resultado pode ser fatal.
Se não bastasse tanta coragem, ainda fazer tudo isso diante de um público. Quantas pessoas ali na plateia não estão sedentas para ver a artista fracassar? No geral, querem ser surpreendidas, a atenção delas custa caro. Ainda que dê tudo errado e a espada saia rasgando a artista de dentro para fora, promovendo um show de sangue, o público vai sair dali satisfeito, deslumbrado: a lâmina era mesmo real!
Que ideia estúpida fazer disso um espetáculo. O que leva alguém a engolir objetos cortantes por entretenimento? Pagar as contas está mesmo cada vez mais difícil. Uma motivação possível, claro, mas desconfio que seja mais que isso.
As artistas que engolem espadas prestam também um serviço. Questão de lógica: se não houvesse público, o ofício não teria sobrevivido por tantas gerações. Algo elas oferecem. Sim, ao deslizar uma faca pela própria goela, mostram que algo podemos fazer dos nossos vazios. Além disso, usam a solidez de uma lâmina — afiada, perigosa, real — para fazer visível uma substância intangível: a capacidade humana de vencer o medo.
Parece impossível engolir uma espada sem se destroçar no processo? Pois me veja tentar! A espada está lá. A garganta, também. É possível, ainda que por instantes, fazer a mente ser mais forte que o medo de errar, mais forte que a vontade de gritar. Demonstração necessária: não somos tão frágeis quanto nosso sofrimento nos acusa de ser.
O valor do ingresso reside aí. A artista enfia uma espada na garganta, com todo o risco que sua performance carrega, para mostrar que é possível arrancar algo afiado de dentro de si e permanecer inteira no final.
Personagens são valiosos, não apenas para quem os escreve. Também para quem os lê, que pode, através deles, enxergar possibilidades.
Quero escrever sobre pessoas que erram, que estão perdidas, mas se movimentam e saem do lugar. Ainda que de forma imperfeita. Ainda que se ralando inteiras no meio do caminho. É de gente em travessia que quero falar.
O importante é o movimento. E é isso que as histórias são, não? Um movimento de um lugar para o outro, de um estado para outro, do não-saber para o saber, ou ainda o contrário, aquele caminho que dissolve as certezas, que nos deixa nus.
Algo deve se modificar no processo. Ou no mundo da história, ou no interior do personagem, ou em quem lê.
Algo precisa mudar, nem que seja em mim. Ou contar histórias para quê? É um custo alto demais para nada sair do lugar.
Escrever tem sido um sofrimento. Esperneio, me debato, luto contra. Meu processo sempre envolveu alguma etapa de dor e ranger de dentes. Mas, de uns tempos para cá, detesto tudo o que consigo colocar no papel. Tenho medo de não ter mais o que espremer da minha cabeça. Será que um dia já soube fazer isso?
Eu não tenho o mapa da história, eu não tenho as credenciais certas para conduzir o leitor para onde quer que seja. Escrevo dolorida, me rasgando inteira no processo, na esperança de fazer aparecer um personagem com contornos bem definidos o suficiente para que eu possa segui-lo.
Se duvido de mim, talvez eu possa acreditar nele. Sim, é ele quem me presta um serviço. Então seguro na mão do personagem e deixo ele me levar. Quem sabe para um lugar onde todo esse não-saber possa virar um espetáculo, algo bonito de ver.
“porque a morte dói. também a vida dói, o cotidiano massacra; a rotina, a solidão. as cidades e as guerras e o ódio e uma vida que não tem nenhum sentido e jamais poderia ter. mas a literatura, pela palavra, reorganiza tudo isso e nos reapresenta a vida COMO SE ela pudesse ter sentido.”
— Oli Maia, trecho do texto “a literatura multiplica a vida: uma digressão sobre a importância da literatura”
Uma Palavra sempre será gratuita. Porém, assinantes pagos recebem as vísceras do meu processo e das minhas pesquisas. Saiba como vir para dentro:
Há algumas semanas, saiu uma matéria do jornal O Globo sobre mudanças climáticas e literatura, falando sobre como meus romances abordam o tema. Com destaque para “As águas-vivas não sabem de si”, onde uso do truque da literatura para deslocar a perspectiva para criaturas não-humanas, algo não muito comum em romances: “As baleias têm elevada capacidade de comunicação. Quem não se entende somos nós.”
Fiquei bem feliz de finalmente ver meus livros sendo falados no jornal, como parte de um tema tão importante. Você pode ler a matéria completa aqui. Ou sem paywall aqui.
Outra notícia legal que tenho para dar: pela primeira vez na minha carreira tive uma história publicada em outro idioma! “Carranca”, o conto solarpunk mencionado na matéria acima, saiu em inglês e italiano na coletânea Meteotopia: Future of Climate (In)Justice.
A cacofonia de vozes e grandes conquistas das redes sociais fazem a gente se sentir atrasada, sendo deixada para trás, mas a real é que o processo muitas vezes é lento. Podem demorar anos para algo legal sair. O movimento em grande parte é silencioso, até imperceptível, mas está lá, acontecendo.
Em tempo
Lobos-guarás e sonhos: se essa combinação soa bem para você, aposto que vai gostar de conhecer “Guarás: a outra margem”.
É uma história em quadrinhos escrita por Felipe Castilho e com arte belíssima de Monaramis, que está com um projeto aberto no Catarse para ter sua versão impressa financiada.
Sem dar muito spoiler, posso adiantar que o Felipe me convidou para fazer parte dessa edição, então você vai me levar junto nesse pacote! Faltam poucos dias para terminar a campanha, vem pegar o seu guará!
O Texto & o Tempo é uma iniciativa 100% independente, organizada pela Vanessa Guedes e agilizada por uma porção de autores de newsletters, que arregaçaram as mangas para criarmos esse evento de troca de ideias sobre escrita & leitura nesse formato que está dando gosto de ver crescer.
Será nos dias 5 e 6 novembro e vou dar uma palestra sobre como desdobrar sua newsletter para outras possibilidades: livros, zines, projetos sonoros, o que mais você imaginar, apontando caminhos para os seus textos irem ainda mais longe. Garanta seu ingresso aqui.
Obrigada por me acompanhar em meus percursos de dúvidas e descobertas. Não faz sentido ser outra coisa na escrita se não honesta.
Pode ter certeza que a lâmina é real.
Um beijo e até a próxima,
Esse texto era exatamente o que precisava ler hoje! Muito obrigado!!
eu preciso ler as news em duas ou três vezes. é absurdo! leio um pouco e preciso ficar um tempo absorvendo e pensando pra depois ficar disposta a receber novas informações!!! isso é tão raro na internet! muito obrigada muito obrigada muito muito obrigada