Sai a carta do Demônio e não fico mais assustada. A imagem é tenebrosa, mas sei que cabe dentro dela muita coisa além do puro e simples mal. Pode representar desejo. Ou o prazer por tudo que é carnal, material, bestial. Comida boa, roupas caras, vinho, drogas, luxúria, farra, gozo, descer até o chão. Pode ser o sátiro da sacanagem. A vida de rockstar. A falta de vergonha.
Imagina fazer o que você quer, simplesmente fazer e dane-se as consequências? O tipo de coisa que o diabo sussurra. Vai ver foi o que ouviu a moça andando de biquini e botas aqui na rua, um dia qualquer da semana. Passava atraindo olhares desacreditados, risos constrangidos, cabeças balançando em desaprovação. Tá doida, tadinha. Andava com passos firmes, provocando uma onda de caos atrás de si, quase como se não percebesse, ou não ligasse. Então passou. Sumiu em alguma esquina, mas deixou efeito em cada testemunha daquela aparição. Bastou um toque de estranho, um biquini onde não se espera vê-lo, e lá estava a perturbação: imagina, simplesmente fazer o que você quer?
Vade retro! Diabo pode ser aquilo do que queremos fugir, por isso pintar de chifres e corpo animalesco. Insuportável encarar. E nem precisa ser algo ruim para querermos distância. Às vezes é justamente o contrário. Às vezes o assustador é se entregar ao que desejamos.
Sem querer bancar a advogada do diabo, mas como personagem ele nem é tão horroroso assim. Tá na Bíblia para quem quiser ver. Jesus no deserto desidratado, com insolação e o demônio oferecendo água, um pãozinho de queijo, uma cama para dormir, um beque. Quer voar, Jesus? Eu sei que você quer voar. O póbi lá se martirizando e o diabo lembrando que ele não precisa se cobrar tanto para agradar o pai. Dá uma lidinha no livro de Jó e confere quem foi que arruinou a vida do homem só para testar um negócio. O diabo é só o chato de palestra que levanta a mãozinha para fazer uma provocação, quem destrói é Deus.
O demônio está no nível do chão, que é de onde dá para ver a humanidade de perto. Por isso sabe apertar onde dói e oferece o que é difícil recusar, porque conhece bem até demais a condição humana. Gente é esse bicho que não tem chifres, mas é perigoso igual.
E, porque Satã tem tantos nomes, pode ser ainda o medo. Aquilo que não tem forma, nem contorno, que vem do nada e te assalta em horas inesperadas com um pavor de algo que nem nome tem. Mais assustador do que um chifrudo de pele vermelha me parece a ideia de uma entidade que muda de forma, que não se fixa em imagem alguma. Está sempre trocando de pele, e portanto, não pode ser aprisionado. Transita. E, quando está de passagem, quem fica imóvel é você.
Aquela imobilidade terrível diante do que não faz sentido, do que não pode ser explicado. Um peso sentado sobre sua traqueia numa noite inquieta de sono, sufocando, impedindo você de respirar ou gritar. O pavor de perceber que perdeu o controle do próprio corpo, que não consegue se mover para certificar se está sonhando, se realmente recebeu a visita do capeta, ou se não consegue respirar porque está tendo uma crise de apneia.
Em “Uma tristeza infinita”, de Antônio Xerxenesky, aparece o diabo, numa roupagem interessante. Nicolas é um psiquiatra francês trabalhando num pequeno vilarejo na Suíça e atende um paciente, supostamente esquizofrênico, que acredita conversar com Satã. A Segunda Guerra Mundial tinha acabado havia poucos anos. Na clínica, era inevitável esbarrar com as consequências dos horrores da guerra, da bomba nuclear e do nazismo nos sofrimentos entranhados na mente dos pacientes.
Emil, o paciente, jura que não é louco, embora à noite veja Satã do seu lado na cama, troque ideia com ele, sinta sua presença nos corredores da clínica psiquiátrica. Para ele, o diabo significava potência. Razão. A luz que ilumina o mundo. Com a medicação, as alucinações começam a desaparecer e Emil recebe alta. Mas suas visões deixam marcas profundas em Nicolas, que percebe, horrorizado, que acabou ajudando uma pessoa que representava o que ele mais abomina.
Nicolas vai desabafar com um colega e pergunta se ele acredita que a maioria das pessoas tem tendências racistas e fascistas. Estão só esperando surgir algum monstro que verbalize esse ódio para apoiá-lo? Ao que o colega responde:
“Não apenas verbalizá-las. É preciso gritar, gesticular, ser enfático. A sedução da autoridade. Podemos localizar uma pre-disposição na personalidade das pessoas para se deixarem levar por discursos como os de Hitler e Mussolini. Como ovelhinhas que sonham em um dia ser o lobo que irá torturar todos os animais”.
“Mas e o que fazemos quanto a isso?”
“Simples. Nós sentimos uma tristeza profunda”.
— Antônio Xerxenesky, em “Uma tristeza infinita”
O demônio não é tanto algo que você vê; em vez disso, é algo que aparece para ocupar o lugar de algo que você se recusa a ver.
Onde está o diabo? E saímos em sua busca para apontar onde mora o mal absoluto. A figura do diabo parece pouco para comportar todo esse mal. Transborda. Está no homem que ocupa a cadeira da presidência, está nos 30% da população que acha ok seguir apoiando um projeto de aniquilação. Está no milionário careca, está no revolucionário que entra para o jogo de se tornar celebridade, está em quem persegue os números. É o capitalismo, resposta mais fácil de encerrar os problemas do mundo, ah, mas tão bonitas essas blusinhas em promoção! O diabo está na superioridade moral de quem acha estar fora do sistema, quando estamos no Bad Place e não há muito para onde fugir.
O diabo está no RT comentado, na timeline infinita, nos verbos no imperativo das propagandas, nas respostinhas passivo-agressivas. Está na falta de atenção, como diz meu amigo Alex Castro. Está em alguém gritando de raiva antes das 8h da manhã. Está nos pensamentos intrusivos que nos tiram a concentração, está na comparação com os outros que nos distrai e nos consome. Está no fascínio pela imagem, está no frenesi da tiete. O diabo está lá fora, bem longe dos meus hábitos tão conscientes, mas vamos de mais um documentário para ficar obcecada com a vida de alguém que cometeu atrocidades.
Tentar encontrar o diabo é a busca por projetar o mal para fora de mim, numa espécie de exorcismo. Não, o que é terrível tem que estar num outro, tem que estar no sistema, tem que estar fora de mim! E então perseguir essa pegada de contornos animalescos e perceber que me conduzia em círculos, que elas me levavam de volta para onde estão meus próprios pés, que o diabo estava, o tempo todo, do lado de dentro, em um jogo de esconde-esconde com todos os impulsos que não queremos — não podemos — assumir sozinhos.
“O diabo não há! Existe é homem humano. Travessia.”
— João Guimarães Rosa
Amanda Ba
Quando as pinturas de Amanda Ba cruzaram o caminho do meu olhar, fiquei automaticamente fascinada. Tem algo no vermelho que captura o olhar. Pode significar tantas coisas. Luxúria, desejo, raiva, guerra, devoção religiosa, rebeldia, comunismo. Os mesmos significados que também a atraem para a cor vermelha, como ela conta aqui, embora não esteja evocando particularmente nenhum deles ao abusar do vermelho cádmio. Sangue, carne, animal, bestialidade. Nobreza. O vermelho está aberto para a interpretação de quem observa.
Mais do que a estética, tem algo provocante no retrato dessas gigantes de pele vermelha em convivência quase simbiótica com cães musculosos. Mulheres que correm com buldogues. Figuras colocadas assim, sem hierarquia, mesma cor, mesmo nível, mesma proporção. As feras se misturam. Tudo o que continuamos revestindo de civilização para negar.
Alô, alô, me escuta?
No último email que enviei, contei da novidade. Teste, na verdade. Em vez de avisar de episódio novo de podcast no meio da edição da newsletter, como sempre fiz, resolvi abrir um puxadinho para Bobagens Imperdíveis por aqui.
Significa que quando sair episódio novo, você vai receber um email avisando. Vai poder ouvir diretamente daqui ou usar de lembrete para ouvir no app de sua preferência. Mas só se quiser! Se não quiser, é só vir aqui e desmarcar a opção Bobagens Imperdíveis, sem afetar o recebimento de Uma Palavra.
Tá ficando bem legal o portal da news. Organizadinho do jeito que eu gosto. Para quem é curioso e gosta de fuçar arquivos: em uma aba você vai encontrar as edições passadas da newsletter (desde que passei a enviar pelo Substack) e em outra todos os episódios do podcast.
Você sempre pode me contar o que acha respondendo a este email ou deixando um comentário.
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Para ir mais fundo nas águas da escrita
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“Personagens têm direito apenas a essas poucas horas de som e fúria sobre um palco, essas fatiazinhas de vida, entrecortadas, efêmeras. Quando saímos da sala de projeção, estamos de volta ao nosso tempo esférico, imutável, que não acelera nem retarda. Pobres personagens de filme: nós somos os Perpétuos deles.”
— O fantástico Bráulio Tavares discorrendo sobre Sandman
“Há outro tipo de profundidade que se alcança no se mover devagar, no ver de perto, em persistir, em viver nos detalhes”, artigo incrível da Rebeca Solnit (em inglês) para lembrar que nem todo livro precisa te levar em linha reta para outro lugar
Ou, como bem lembrado pela Fabiane Guimarães, “a vida e a escrita se entrelaçam, e em nenhuma delas é possível engolir o tempo”
Foi só começar a escrever o texto de hoje que deu vontade de cantarolar “Time is on my side”. Será por quê, hein?
Depois de anos enterrados no canteiro do rancor, os afetos ficam irreconhecíveis. Reviro terra úmida, arranco raízes e afasto as pedras para descobrir que sumiram as mágoas que deixei ali. Onde foram parar?
Lembro de uma raiva nutrida, viçosa, que se esparramava por ali quando me vinha à mente a figura das pessoas que um dia me causaram sofrimento, fizeram pouco de mim, pisaram, ainda que sem querer, onde dói. De repente, não mais. Fica a vaga lembrança de que eu não deveria gostar delas, mas por quê?
Como o tempo faz parecer ridículas as picuinhas. Não, não há volta do que acontece, e por isso as distâncias continuam lá. Mas que curioso espiar pela fresta para descobrir que o tempo todo aquela figura que decidi vestir de vilã não passa de uma pobre coitada, assim como eu. Ela está tentando! Posso sentir pelo que ela está passando, eu a conheço. Ou melhor, conhecia.
Ainda que reste apenas o vínculo rompido, penso que é de alguma forma especial, num planeta com 7 bilhões de humanos, perceber que essa pessoa com quem me desentendi foi alguém que um dia conheci. Sinto afrouxar os dedos ressecados do rancor em torno daquela pessoa, mas, enfim, quem se sente livre sou eu.
Conjugar um verbo no passado pode ser libertador.
Por hoje é só, pessoal.
Beijo grande,
Em tempo: adorei a sua interpretação. Muito muito muito. (E uma alegria ser citado por você, de quem sou fã)
Hoje essa carta saiu pra mim! O texto foi um presente 👹 amei!