Amigo me pergunta se estou acompanhando a briga entre Drake e Kendrick Lamar e digo que sim, iludida, só para descobrir que perdi vários capítulos da novela, que estou atrasada, que muita coisa aconteceu desde que o J. Cole se arrependeu de entrar na treta, tirou sua música do ar e pediu desculpas bem fininhas pro Kendrick na frente de todo mundo.
Difícil acompanhar a velocidade de rappers milionários trocando farpas e acusações via canções. Nada como possuir enormes quantias de dinheiro e muito rancor no coração para fazer um artista produzir rápido feito o diabo. É piscar os olhos e tem mais três músicas novas, cada uma sendo um mil-folhas de insultos tão cheio de nuances que bendito seja o Genius por explicar, por exemplo, que a capa de Push-ups é uma forma do Drake chamar o adversário de nanico.
Baixaria é uma palavra que resume bem essa história, embora até o momento os rappers rivais estejam trocando disses, em vez de socos ou tiros. Diss é como no rap se chama uma música endereçada a um desafeto, com o objetivo de fazê-lo chorar. O nome vem da palavra disrespect. Não, diss não vem de "disse-me-disse", embora seja uma modalidade musical que sirva porções generosas de fofocas, intrigas e discórdia.
A cultura da diss ganhou popularidade na cena hip hop dos Estados Unidos nos anos 80, mas é bem provável que a primeira diss da história da música tenha sido feita por um brasileiro, no território do samba.
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Em 1933, Noel Rosa ficou indignado quando soube que outro sambista começou a dar em cima da moça por quem ele tinha um crush, numa baladinha na Lapa que ambos frequentavam. Ele não deixou barato e resolveu compôr Rapaz folgado para alfinetar o rival, Wilson Baptista, que respondeu com outro samba, dando início a um longo duelo em forma de canções, conforme narrado nesse ótimo texto aqui.
O povo em volta deles colocava a maior pilha para que um continuasse a responder o outro. Como quase sempre acontece numa disputa entre artistas, o público torce mesmo é pela briga. Chegou a um ponto em que Wilson pesou a mão no deboche e compôs uma música chamando Noel Rosa de Frankenstein da Vila. Achei apelação.
Noel Rosa deve ter sentido. Pouco depois disso, propõe uma trégua a Wilson e chegam a gravar uma música juntos. Parece que se reconciliaram, mas a camaradagem dura só até a morte de Noel Rosa, poucos anos depois. Nos anos 50, essa história é resgatada por um programa de rádio e a coleção das disses do samba compostas por Wilson Baptista e Noel Rosa chega a ser gravada em um disco chamado Polêmica, com oito faixas de puro rancor.
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No caso de Drake e Kendrick, a troca de sopapos já acumula umas 14 músicas e eu não sou nem louca de entrar nos detalhes dessa cronologia. Tem até uma página na Wikipedia para registrar todo o histórico da treta, boa sorte.
Mas, em resumo, começa com uma disputa de quem é o mais fodão, o número um, e olha como eu faço mais dinheiro, ah, mas eu tenho mais clássicos, e eu que sou mais famoso na sua quebrada que você? Aí um chama o outro de baixinho, que devolve chamando de mentiroso, o Drake evoca os mortos e coloca a voz do Tupac gerada por inteligência artificial (!!) para atacar o Kendrick, faz o mesmo com a voz do Snoop Doggy, que estava de boa no conforto do seu lar quando se vê no meio dessa presepada e fala "mas é o quê? Fizeram o quê? Pelamordedeus, eu vou é dormir", no que o Kendrick responde acusando Drake de assediar menores de idade, o Drake devolve dizendo que o outro bate em mulher, e ah, se é para colocar família no meio, deixa eu dar um recado para sua mãe, ni qui Drake responde com ai, como ficou bravinho o vencedor do Pulitzer, e assim por diante.
Uma disputa de egos que escalou bem rápido para acusações pesadas de pedofilia e violência doméstica, que ficaram no ar como um mero elemento do espetáculo, como se fosse tranquilo usar abuso de mulheres como punchline. Como escreveu a Tayo Bero neste artigo no The Guardian: "o histórico desses homens mostra que eles estavam tranquilos em serem guardiões do silêncio, quando se manifestar [sobre esses casos de violência] não servia aos seus interesses". Um homem denunciar outro homem? Talvez quando for conveniente para provar um ponto.
O que importa é a polêmica. É ela o combustível que move a indústria do entretenimento. Enquanto um continuar a responder o outro, o holofote estará sobre suas cabeças. É um grande teatro? Suspeito que sim. Porém, mesmo que o antagonismo seja real, não deixa de ser uma forma de colaboração. Os dois, juntos, estão conseguindo pautar conversas, na mídia ou fora dela, por semanas.
Não me surpreenderia se daqui a uns anos aparece um álbum assinado pelos dois reunindo as principais disses dessa treta. Gringos amam imitar brasileiros.
Melhor parar por aqui. Até terminar de escrever esta edição, Kendrick terá lançado mais duas músicas. E, afinal, precisamos saber como essa história vai acabar. Ou quando. Céus, pode se estender ao infinito. Quantas disses ainda teremos que ver os dois trocarem antes do público se cansar e ir se distrair com outra treta de celebridades?
Me pergunto se vai sair dessa disputa alguma música que permaneça, que as pessoas vão querer ouvir depois que a polêmica esfriar. Ou tudo isso não vai passar de mais uma vaga lembrança de homens fazendo homices, como a vez em que Mark Zuckeberg e Elon Musk prometeram sair no braço e duelar até a morte. Estão nos devendo essa até hoje.
"No fim, pra mim, cada diss tem soado assim
Como se todo MC tivesse escrito pra si mesmo"
— Rashid, em "Primeira Diss"
Racionais MCs ensinam muito sobre literatura
Para muito além de saber prender a atenção do público, nós escritores de ficção temos muito a aprender com o rap.
Faz um tempo escrevi um texto mostrando as lições literárias contidas em Jesus Chorou, dos Racionais: um início cativante, voz narrativa contemporânea, boa construção de personagens, diálogos convincentes.
Essa música traz lições valiosas para quem escreve, é só prestar atenção. Por exemplo:
A forma que a história de Jesus Chorou se apresenta me lembrou um fluxo de consciência. É uma técnica que busca simular o caótico processo de pensamento, de associação de ideias, e da manifestação do inconsciente de determinado personagem, em seu mais puro estado. Virginia Woolf é bem conhecida por usar essa técnica, e seu romance Mrs. Dalloway é um exemplo bem ilustrativo disso.
Redescobrir o Brasil
Esses dias viralizou o vídeo de uma escritora e podcaster americana que ficou completamente estupefata das ideias lendo Machado de Assis.
Há um gosto todo especial em ver pessoas de outras culturas descobrindo as maravilhas que o povo brasileiro é capaz de criar. A gente sabe que Machado de Assis é da matéria de que são feitos os cânones da literatura mundial, então a gente sorri, cheios da razão, quando ouve alguém declarar isso em um outro idioma.
O Brasil está na moda. E essa tour da americana lendo Memórias póstumas de Brás Cubas me lembrou de uma matéria da Manu Barem na Revista Piauí falando dessa trend de fazer conteúdo sobre o Brasil: "O Tio Sam está querendo conhecer o nosso engajamento". Um trechinho:
"Na verdade, não precisa ser necessariamente famoso para conseguir a atenção do brasileiro na internet. No TikTok, muitos criadores de conteúdo estrangeiros já entenderam que fazer passinhos de funk ou conteúdos com áudios de influenciadores nacionais é um passaporte para que seu vídeo possa bombar. A expectativa é usar as milhares de visualizações que o Brasil entrega como um trampolim para dar um ganho no engajamento do perfil. E, com isso, o algoritmo mostrar a conta para mais gente."
Claro que é ótimo que isso esteja ajudando a levar tesouros nacionais como Machado de Assis e Racionais MCs para mais longe. É quando a gente percebe como nossa produção literária é universal, capaz de atravessar fronteiras (um pouco sobre o que falei do Paulo Coelho numa edição passada).
Mas olho com desconfiança esse movimento quando o que parece estar realmente atraindo todos esses criadores de conteúdo gringos é o engajamento dos brasileiros (público que passa, em média, 9 horas e meia online, contra uma média mundial de 6 horas e meia). Atenção é o novo ouro. E adivinha onde os gringos estão vindo garimpar. De novo.
Falar do Brasil é uma forma fácil de alavancar os números, exceto, é claro, se você for brasileiro. Não espere uma grande comoção na mídia se você fala ou escreve ou exalta nossa produção cultural se você faz isso em português. Boring! Se quiser mesmo chamar a atenção, comece a dizer que vem da Costa do Marfim, fale português forçando um sotaque francês, ou fale em inglês a mesma coisa que você tem martelado em português e ninguém escuta. Surfe essa onda!
Não tem graça ouvir um brasileiro falando do Brasil. A graça está em ser descoberto por esse olhar de fora. Não superamos mesmo a colonização, se continuamos a viver a narrativa de ser um povo à espera de ser descoberto. A diferença é que o pau-brasil, hoje, somos nós.
Agora, se isso ajuda a vender mais livros brasileiros em outros países, pra mim tá ótimo, pode levar tudo, welcome, be my guest!
Quais gringos fazendo conteúdo sobre o Brasil você acompanha?
🌱 publi
Aprenda línguas com a Fal
Eu vivo falando da Fal Azevedo por aqui: ela é uma das minhas escritoras brasileiras favoritas, autora de livros como Sonhei que a neve fervia e Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite, e do indispensável blog Drops da Fal, que agora também é uma newsletter no Substack. Não canso de recomendar tudo o que essa mulher escreve e produz.
Hoje a recomendação é para quem quer aprender a falar outro idioma: a Fal dá aulas particulares online de inglês e espanhol e monta aulas personalizadas de acordo com a necessidade de cada aluno.
Precisa aprender espanhol para uma viagem de férias, para visitar o namorado, para se candidatar a alguma vaga? Precisa melhorar o inglês para participar de um congresso, para morar em outro país, para responder a uma diss do Kendrick Lamar? A Fal monta o encontro de modo a unir gramática e conversação, para que a língua estudada possa atender ao que você precisa.
Imagina ter aulas de idiomas com a Fal Azevedo herself. Ela dá aula há mais de 30 anos e é tradutora de uma porção de livros: tem experiência em tratar a linguagem com carinho. Pode segurar a mão dela com tranquilidade para seguir seu percurso em um novo idioma.
Explica para ela o que você precisa aprender, que ela está aberta a conversar, ouvir e explicar. Só mandar uma mensagem por WhatsApp 11 986833748 ou um email para aulasdrops@gmail.com.
Como ajudar o Rio Grande do Sul
Enquanto escrevo esta edição, ainda chove em boa parte do Rio Grande do Sul. O Rio Guaíba volta a encher, as ruas de Porto Alegre voltam a alagar, Pelotas segue inundada, enquanto chove granizo. A tragédia se estende e mal consigo imaginar o nível de exaustão de quem está vivendo isso na pele.
A ajuda segue necessária em várias frentes. Abaixo compartilho com você mais algumas iniciativas onde sua doação será muito bem-vinda:
A CUFA (Central Única das Favelas) está distribuindo doações, como cestas básicas, colchões e itens de higiene, para pessoas afetadas em diversos municípios, além de mobilizar mutirões de limpeza para recuperar os espaços da lama. PIX: doacoes@cufa.org.br
A Casa de Cultura e Resistência está preparando marmitas para as pessoas vivendo em abrigos, ajudando a distribuir carregamentos de água, mobilizando brigadas de limpeza, organizando um espaço feminista para arrecadar doações de itens destinados a mulheres e crianças. Além de doações, eles também estão precisando de voluntários. Para doar, o PIX é: casadeculturaeresistencia@gmail.com.
Nos capítulos anteriores...
Diante da enormidade da tragédia, normal nossos esforços parecerem minúsculos.
Misturei Paulo Coelho, Jorge Ben Jor, caipirinha e a influência árabe na nossa língua e deu nisso aqui:
"When the lights shut off
And it's my turn to settle down
My main concern
Promise that you will sing about me
Promise that you will sing about me"
— Kendrick Lamar
Obrigada a você que leu até aqui, atravessar um texto de 2.084 palavras não é para qualquer um. É que às vezes não sei a hora de parar, assim como Drake e Kendrick.
Se gostou de algo que leu e quiser printar, compartilhar, encaminhar, vai me deixar muito feliz. Se chegou nesse texto pelos caminhos misteriosos do Universo, saiba que assinar para receber as próximas edições é grátis.
Beijos e até a próxima,
Aline.
Aline, ler esse texto tomando um café num sábado nublado me tirou vários sorrisos sinceros e uma mente inspirada em mil direções diferentes. Ouso dizer que, talvez, esse seja um dos que colocarei entre os meus textos favoritos seu! Que boa coisa é abrir a caixa de e-mail e deparar com uma “Uma palavra” (ou nesse caso, 2.084 palavras haha).
Obrigada por colocar em palavras exatamente o que eu andava pensando sobre a história da gringa. Eu quando vejo conteúdo de gringo elogiando efusivamente o Brasil já rolo a tela e os olhos!