Um artista que se pinta como Cristo em pleno ano de 1500 estava mesmo com muita vontade de ostentar sua autoestima para o mundo. O autorretrato de Albrecht Dürer é afrontoso: mostra o artista com semblante e pose de messias, as mãos sensualmente tocando seu casaco de pele, os cachos louros hidratadíssimos caindo sobre seus ombros. Não bastasse isso, escrito em dourado na altura dos olhos, o monograma "AD", que se tornaria a marca mais icônica de um artista na história — seguida da assinatura de Maurício de Sousa.
Aquele quadro, mais de 500 anos depois, comunicava que eu estava diante da Beyoncé de uma época: Dürer foi a maior celebridade internacional de seu tempo. Visitei sua casa em Nürnberg, um casarão enorme bem na esquina do castelo da segunda maior cidade de todo o Império Romano-Germânico. Ele era bróder do Imperador Maximiliano I. Pintava os retratos dele. Vivia frequentando a corte. Tinha em casa uma pequena gráfica com prensas, em um tempo em que a impressão em papel era a tecnologia revolucionária do momento. Era um homem riquíssimo. É bom, pra variar, ver a história de um artista que foi reconhecido em vida, em vez de um fodido mal-pago que não tinha onde cair morto e que hoje tem peças leiloadas por milhões.
Esse autorretrato pode parecer uma demonstração banal de vaidade para nós, habitantes da Era da Selfie, mas para a época de Dürer era uma escandalosa demonstração de poder. Autorretratos não eram muito comuns. Mas Dürer adorava pintar a si mesmo, desde muito novo. Com 13 anos, ilustrou seu primeiro autorretrato com ajuda de um espelho. O pai dele trabalhava como ourives, um ofício parecido com o que o garoto resolveu seguir, de gravurista. Foi por meio das gravuras que o jovem Albrecht conseguia pagar as contas. A Igreja era a maior anunciante da época, vivia encomendando cenas bíblicas. Os autorretratos não davam retorno nenhum (quem ia comprar um retrato de um pintor, mesmo que fazendo cosplay de Cristo?), mas ele os fazia para ganhar fama. Considerando como ele foi materialmente bem-sucedido, parece que a estratégia deu certo. Investir em polêmica segue sendo a receita do sucesso até hoje.
Albrecht Dürer foi um visionário nos negócios e na arte que produzia. Era um obcecado pelo estudo da anatomia e da natureza. As imagens que ele criava, cheia de cores, volume, perspectiva realista, eram como uma explosão de efeitos especiais para uma sociedade que engatinhava para fora da Idade Média. Tinham muito apelo visual porque expandiam o imaginário do público, retratavam a realidade de formas até então inéditas. Foi ele quem ilustrou um rinoceronte apenas com os relatos que recebeu de viajantes. Pintou os primeiros nus masculinos do norte da Europa, com precisão de detalhes. Ele inaugurou a ideia de artista que seguimos até hoje, na forma de publicação, de venda e distribuição de arte. O cara realmente tinha muitos motivos para se achar tão foda quanto um barbudo hippie no meio do deserto que virava para as pessoas e dizia com a maior naturalidade "então, galera, o negócio é que sou filho de Deus".
Dürer fez fortuna, mas não fez herdeiros. A família arranjou o casamento dele com uma burguesa chamada Agnes. Só então, como homem casado, teve autorização para ter seu próprio ateliê, como era a lei da cidade — não te cheira a casamento de fachada? Dürer não parecia gostar muito da esposa (há registros dele se referindo a ela como "corvo velho") e sempre que podia, inclusive pouco tempo depois de casar, saía em longas viagens para o sul dos Alpes, ou para o norte da Europa, seguindo o rio Reno até os Países Baixos. Opa, tá explodindo uma epidemia de peste na cidade? Vou dar um pulo ali em Veneza e já volto. E deixava a esposa em casa.