Gosto da companhia dos livros da Margaret Atwood porque ela é sincerona.
Não adoça o futuro, exagera o que a gente conhece. Não garante que o caminho diante de nós será tranquilo. Não mente sobre quem a gente é, nem esconde as coisas espantosas que somos capazes de fazer. Fez isso com O conto da aia. Tem sido assim com a minha leitura atual, Oryx e Crake.
Essa mulher é muito bruxona do fim do mundo, escreve um apocalipse como ninguém. Ela me leva para o futuro como se me chamasse para caminhar no bosque em um dia escuro. Meio assustador, mas se o medo não me distrair, até consigo ver beleza pelo caminho.
Há um estranhamento em vagar por um mundo devastado e quase desabitado, onde algo terrível aconteceu, e encontrar pedacinhos do mundo que existiu antes. Porque esses destroços passam a ter um outro significado. Fora do seu lugar de origem, podem ser qualquer coisa. Inclusive valiosos de um jeito que não eram antes.
São os objetos que o protagonista de Oryx e Crake vai catando enquanto tenta sobreviver sozinho: garrafas, óculos, lençóis, comida enlatada. As palavras de que ele se lembra e que não fazem mais sentido ali. Tipo torradeira. Como explicar o que é uma torradeira numa realidade em que a civilização foi para as cucuias?
Ou então o tablete de manteiga que a protagonista de O conto da aia encontra e esconde dentro do seu sapato, por ser proibido a ela, uma escrava sexual de uma teocracia cristã. Algo tão corriqueiro e banal no nosso mundo e que para ela se transforma num pequeno tesouro, que a faz se sentir um pouco mais gente.
Os tempos que já se foram não somem por completo. Deixam vestígios, avançam para o futuro em pedacinhos. Sinalizam uma destruição: de objetos, sociedades, significados. Mas também viram peças de um quebra-cabeças que convida a formar novas imagens.
É aí que Margaret Atwood me acalma. A aniquilação, por mais terrível que seja, nunca é completa. Uns cacos resistem. Dos objetos, das palavras, ou da gente mesmo.
Então quando me sinto esfarelando com o tempo, percebo que caminhar em meio aos destroços me permite escolher, e catar com cuidado, novos pedaços para encaixar nos lugares vazios que vão aparecendo em mim.
Ele gostaria de ter alguma coisa para ler. Para ler, para ver, para escutar, para estudar, para compilar. Pontas soltas de linguagem flutuam em sua cabeça: mefítico, metrônomo, mastite, metatarso, maueza.
— Eu costumava ser erudito — ele diz em voz alta. Erudito. Uma palavra inútil. O que eram todas aquelas coisas que um dia ele achou que sabia, e para onde elas foram?
— Margaret Atwood, do livro “Oryx e Crake”, tradução de Léa Viveiras de Castro.
Essa é uma das peças da série Autorretratos, do artista brasiliense Gregório Soares.
Na fotografia, restos de azulejos de Athos Bulcão, coletados de alguma demolição ou reforma. Os cacos são rearranjados em novas formas, resgatadas da função de entulho para compor um retrato. Do artista? De quem olha?
Olho com frequência para a peça que tenho pendurada na parede da minha sala. É uma obra que me diz várias coisas: como somos feitos dos pedaços dos que vieram antes de nós; como a ruína pode ser apenas o início; como nada está pronto, acabado, se nossas ações podem sempre modificar o significado das coisas.
Também me faz pensar em Brasília, tão jovem e já se desfazendo. Como eu, como você. E dos versos do poeta Nicolas Behr: “Brasília foi construída / para ser destruída / aos poucos / exatamente / como estamos fazendo”.
Tenho assistido O conto da aia para relaxar. O Brasil deixa a gente assim de saúde.
Todo o tipo de horror, abuso e violência, várias pauladas na cabeça por episódio; mas fico tranquilinha porque são imagens fabricadas, porque sei que está no campo da ficção. O lugar adequado para as distopias. Do lado de lá dos livros, das telas.
Assisto pela beleza mesmo: da atuação de Elisabeth Moss, do primor do texto, das cores sisudas da fotografia, que dão aquela impressão de que todo mundo está morto por dentro. Eu também estaria, se precisasse aderir aos uniformes e códigos sociais cafonérrimos de crentes fundamentalistas.
Às vezes é bom se entregar a uma obra de ficção sem que ela precise ter qualquer função didática sobre nossos tempos. Vamos libertar os autores de ficção científica de prever o futuro ou de apontar soluções, minha gente. Uma história pode ser boa simplesmente pelo fato de ser uma história.
Um tapa na cara, por outro lado, consegue ser bastante didático sobre o futuro: é imprevisível e chega com força na sua cara antes que você possa se defender dele. Aliás, foi assim que Margaret Atwood me surpreendeu aparecendo na série. Não poderiam ter escolhido forma melhor de inserir a autora na história. Sentar no sofá e deixar a Atwood me esbofetear é um dos meus passatempos preferidos.
Então era esse o resto da sua vida. Parecia uma festa para a qual fora convidado, só que num endereço que ele não conseguia localizar. Alguém devia estar se divertindo por lá, nessa sua vida; só que, no momento, esse alguém não era ele.
— Margaret Atwood, do livro “Oryx e Crake”, tradução de Léa Viveiras de Castro.
Se algum fragmento desta edição encaixou em você, espalhe por aí.
I'm too old for this shit
Cerca de metade dos jovens nascidos em 1998 não conhecem No Scrubs. Achei um absurdo. Vi numa pesquisa para investigar as lacunas geracionais nas memórias sobre música. Fiz o teste.
Não reconheci a maioria das músicas que tocaram para mim, lançadas perto do ano em que nasci — que vão ter menos chances de serem lembradas pela geração seguinte e assim sucessivamente, até sumirem.
O esquecimento vem. Tudo o que nos parece absoluto é, na verdade, temporário.
Escrevi mais sobre envelhecer na internet aqui.
Ainda sobre destroços
Os objetos das casas submersas boiavam e eram arrastados para as margens, como num grande saldão de lojinha de 1,99. Objetos de graça! Isso também explicava por que nossos colegas iam nadar lá. Não que ainda desse para achar coisas legais, porque os melhores objetos foram pescados nos primeiros dias. Ali era só o lixo do lixo. Ainda assim, lixo grátis.
Achei interessante uma tábua que passou boiando, nem sei por quê. Levantei e pedi para Kênia me ajudar a puxar aquilo, que eu também queria sair dali com alguma lembrancinha.
Parecia uma tábua de madeira comum, mas tinha um olho mágico bem no meio. “Devia ser de um portão”, ela arriscou.
Olhei por aquela lente e a outra margem do lago ficava tão longe que até parecia que um oceano nos separava do restante do mundo. Deu um aperto estranho. Mostrei para a Kênia.
“O olho mágico faz o mundo ficar maior”, ela achava.
— Trechos do meu romance Cidades afundam em dias normais.
Da cena em que um pedaço de lixo ganha novos significados: um laço entre amigas, ou a primeira lente de uma futura fotógrafa. Afeto transforma tudo.
Processos
Quer saber por que faço o podcast Bobagens Imperdíveis do jeito que faço? Tem curiosidade em saber como escrevo o roteiro? Como edito os episódios? A Helô me entrevistou para um episódio do podcast Radiofonias Internéticas e contei tudo e mais um pouco nessa conversa que ficou delícia de ouvir:
Ei, psiu
Uma newsletter para você receber uma foto do Pedro Pascal toda semana no seu e-mail. Topas?
Gosta do que escrevo na newsletter?
Você pode fortalecer meu trabalho com uma assinatura mensal e ainda fazer parte do nosso exclusivo e maravilhoso grupo dos valekers, onde a conversa sempre continua.
Você também pode me pagar um café, numa doação única e sem compromisso.
Lembrando que o apoio dos leitores é o que impulsiona toda a minha produção e permite que eu continue a costurar fragmentos de significados em meio a uma internet hostil e cheia de publis. Agradeço demais por cada apoio, faz toda a diferença!
Até os próximos pedacinhos.
Um beijo,
Aline.