Artista precisa de validação ou desmancha no ar. Por isso, dá muito trabalho ser amigo de escritor. É o tipo de amizade que vem com um calhamaço de mil páginas em anexo. Tem que valorizar muito quem encara o dever de casa que vem no pacote de gostar de mim, que envolve: ler alguns livros, frequentar eventos em livraria, eventualmente levar papel para casa, abrir meus emails toda semana e alimentar meu ego com biscoitos vez ou outra. Isso já é mais do que muitas disciplinas de faculdade exigem, e eu nem ofereço diploma.
Se algum amigo já se sentiu na obrigação de ler o que escrevo, gostaria de esclarecer que espero sinceramente que se sinta sim. Como pode gostar de mim e não gostar do que escrevo? Eu não sou muito simpática, não tenho habilidades que seriam úteis em uma situação de calamidade, não saberia o que fazer se alguém próximo engasgasse, não tenho dinheiro para emprestar e evito sair de casa. O melhor que tenho para oferecer à sociedade é minha habilidade de combinar palavras para criar pensamentos na cabeça das pessoas. Não dá para entender quando um amigo não se interessa pelo meu melhor. É a mesma confusão que um gato deve sentir quando leva um belíssimo rato morto de presente para seu humano favorito e é recusado com gritos de nojo. Ingrato!
Estou sendo dramática. Escrevo há tempo o suficiente para entender que existe o conjunto de leitores, o conjunto de amigos, e que há poucas pessoas que vão habitar a intersecção entre eles. É mais fácil um leitor se tornar amigo do que um amigo se tornar leitor. Há amigos que realmente não têm o hábito de leitura, ou que não sabem ler em português, ou os que conseguem tranquilamente separar o autor da obra: gostam de mim, mas não têm paciência para minhas histórias. Esses servem para lembrar que o que escrevo não é para todo mundo, e que eu posso sobreviver a isso!
Não posso reclamar. Tenho mais amigos que se interessam pelo que escrevo do que os que não se interessam. Talvez por seleção natural. Fui eliminando os que não estão nem aí para meu trabalho. Vai ficando difícil ter assunto com quem ignora uma parte importante de quem eu sou. "Ah, mas as pessoas são muito mais do que o trabalho que fazem". Não no meu caso! Quando digo que escrevo em tempo integral, estou sendo bem literal. Boa parte desse texto escrevi enquanto sonhava.
Aliás, sempre amo ouvir com detalhes sobre a profissão dos meus amigos. Saber das picuinhas com os colegas, dos problemas que precisam resolver, de como é o dia a dia, das ferramentas que usam. Sempre vou poder usar isso como material para algum personagem. Por exemplo, psicólogos. Eu pagaria para assisti-los atendendo algum paciente. Devem ouvir cada coisa! Eu sei, eu sei. Por algum motivo assistir a um atendimento que é confidencial seria antiético. Isso só mostra o quão longe estou disposta a ir para ficar por dentro da profissão dos amigos.
Essa é outra desvantagem de ser amigo de escritor. Nunca se sabe quando algo que você contou vai aparecer em alguma história. Puxa, esse personagem está familiar... Você se inspirou em mim? Amiga, claro que não! Imagina. Esperto é quem fica ligado no que escrevo. Tem menos chances de ter suas falas aparecendo na boca de algum personagem detestável. Cada um faz o que pode no árduo trabalho de incentivo à leitura.
Perguntei para outros autores como eles lidam com essa relação com amigos e recebi as mais variadas respostas. Uma muito interessante deu conta de dividir as amizades em grupos: os que acompanham de perto e leem tudo, os que apoiam mesmo sem consumir, e os que simplesmente cagam.
Entre esses últimos, fiquei pensando que pode haver os que não se aproximem do que escrevemos para nos dar espaço. Ou porque a proximidade com essa figura mítica do escritor intimide. Talvez mantenham essa distância não por descaso, mas como uma forma de preservar a amizade, ou a imagem que fazem de nós. Como se tivéssemos uma identidade secreta e preferissem nos ver como meros nerdolas de óculos, em vez de saber o que fazemos vestidos de collant escalando prédios de madrugada.
Outra resposta que me intrigou dizia que as pessoas amigas mais interessadas na leitura normalmente querem comer você. Esse é um dado que precisa ser apurado. Quando alguém diz que tem tesão em ler, talvez esteja sendo bem literal.
Experimente fazer um pouco mais de sucesso com a escrita para ter algo pior do que amigos que te ignoram: pessoas que querem ser suas amigas porque você está em evidência. Elogiam, mandam mensagem, querem fazer projetinhos juntos, uma beleza. No momento em que percebem que você não está mais no hype, esquecem até seu nome. Desculpa, é que só posso ser vista com quem tem selinho azul.
Claro que é muito bom ter amigos que celebram minhas conquistas, mas aqueles que marcam presença nos momentos menos glamourosos e fazem companhia enquanto ando pelas sombras do vale da morte e da desistência têm a minha eterna gratidão.
Vêm dos meus amigos escritores os maiores incentivos. Caramba, ele tá escrevendo muito! O maldito tá quase terminando mais um livro. Vou sentar o dedo no teclado e parar de choramingar. Eles também costumam me dar os sacodes mais fortes: "ah, você quer ser mais reconhecida, vender mais? Simples: escreve mais!" Estou com o olho roxo até hoje.
Quem escreve precisa de amigos que escrevem. Eles sabem o gosto do chão onde você se arrasta quando não consegue escrever, porque eles também o frequentam. Eles sabem que você só precisa ouvir algo que te ajude a continuar, mesmo que seja mentira. Eles passam raiva com as mesmas situações que também te tiram do sério. Além disso, eles têm fofocas ótimas do meio literário para trocar com você.
Claro que não é fácil encontrar amigos escritores em quem se possa confiar. Primeiro, não é porque somos escritores que vamos gostar uns dos outros. Tem sujeitos que nem preciso conhecer pessoalmente, já detesto só de ter lido alguma porcaria que escreveu. Mas, acima de tudo, porque escritores não são as criaturas mais sociais dando mole por aí.
Esperar que amigos leiam tudo o que escrevemos pode ser demais. Mas às vezes só precisamos saber que tem alguém na torcida. Nem que seja no gesto mínimo e indolor de apertar o botão de like.
Li que 66% de pessoas da classe A não compraram nenhum livro esse ano. Precisamos ser justos: se as pessoas mais ricas do Brasil não estão interessadas em comprar livros, ter amigos quebrados que nos apoiam, ainda que poucos, é uma enorme vitória. Ou talvez nós, classe escritora, estejamos enchendo o saco das pessoas erradas. Precisamos ter mais amigos ricos para mudar essa realidade.
Amizades incentivam o artista a criar. Não só porque somos narcisistas e amamos confete, mas porque são as pessoas próximas que influenciam nosso pensamento, nos trazem novas referências, alimentam nossa criatividade com perspectivas diferentes sobre o mundo. Nem sempre é possível, mas é bonito sim quando existe reciprocidade nessa troca e conseguimos influenciar de volta.
A população brasileira precisa ler mais! E se isso não puder começar pelas pessoas que mais gostam de quem escreve, sinto dizer que estamos lascados.
"Acho que quando você está numa encruzilhada há alguns amigos que somem, e tudo bem, porque não é o forte deles. Neil é diferente. Ele nunca se assustou sobre estar numa encruzilhada." Tori Amos sobre a amizade com Neil Gaiman.
A
escreveu sobre o quão recorrente tem sido deixar pessoas sozinhas em festas de aniversário, sumir sem responder mensagem, passar meses sem mandar um oi. Somos realmente tão ocupados assim para não termos consideração com nossos amigos?Cuidado com escritores
"Se você ofendia um mago, ele podia te rogar uma maldição e você, sei lá, ia ficar com a mão esquisita por uns seis meses. Se você ofendesse um bardo, o bardo te rogava uma sátira, e você ia ser ridículo aos olhos de seus contemporâneos, aos olhos de sua família, aos seus próprios olhos. Se a sátira fosse boa, ela perdurava. Depois que você morresse, ainda ia ter gente rindo da sua cara.
É por isso que as pessoas tinham mais medo de bardos do que de um feiticeiro, de uma bruxa. É isso que eu quero ver de novo. Que as pessoas tenham medo de quem escreve."
— Alan Moore, o mago, em entrevista que o
encontrou e traduziu em sua ótima newsletter Virapágina
Não foi dessa vez
Imagem de uma aurora boreal registrada no norte dos EUA no dia 1º de dezembro, efeito causado no céu por uma tempestade solar de nível 3. Não foi dessa vez (ainda) que o sol derrubou toda a internet. Imagina o espetáculo de luzes que vai ser quando isso acontecer.
Ler um email de mais de 1500 palavras só pode ser sinal de amor verdadeiro. Obrigada pela leitura e fique à vontade para me responder!
Um beijo e até a próxima,
Esse texto veio a calhar na crise emocional que me encontro pós evento de lançamento do livro. Fiquei emocionada demais com quem foi, mas as ausências doeram pacas. Que difícil cuidar do ego e também que difícil aceitar que precisamos sim do apoio alheio - e tá tudo bem. De novo, obrigada por proporcionar a comunidade valeker, ela me fortalece imensamente como escritora e como pessoa. <3
Nesse aspecto acho que estou bem servida. Minhas amigas são tão queridas que enfiam meu livro na cara das pessoas (mostram para os clientes quando vão na livraria, apresentam para o clube de leitura do prédio, compram vários para dar de presente). Não estou procurando um fã clube, claro, mas meus melhores amigos são de fato os que me apoiam. Eu devolvo na mesma moeda. Ótimo texto! Quer ser minha amiga? Eu só me alimento de café e não dou trabalho