☞ No capítulo anterior: Sonhei que estava em um cassino.
Foram os antigos egípcios que começaram esse negócio de mandar cartas, lógico. Egito, 3.000 AC. Aquele sol de Rá rachando na cabeça, e um pessoal em barcos imperiais deslizando pelo Nilo com uma remessa de papiros.
Na época, mandar cartas era uma tecnologia reservada aos poderosos. Era o meio que os faraós e governantes tinham para se comunicarem em um território tão extenso.
O conteúdo tratava, em geral, de assuntos diplomáticos. Notícias sobre o que estava rolando em outros cantos do Império. Ordens. Tretas políticas. Trocas de farpas. Às vezes, poesia. Ou discussões sobre conflitos territoriais:
"Quando uma formiga é atacada, ela não reage e morde a mão de quem mexeu com ela? Como posso mostrar respeito se corro o risco de ter outra cidade tomada?"
Este trecho é de uma carta escrita em um tablete de argila, mais ou menos no século 14 AC, com palavras ressentidas de um militar chamado Lab'ayu, governante de um território hoje localizado na Palestina, que escreveu ao faraó para reclamar de não poder atacar de volta outro governante que tomou sua cidade, roubou a estátua de seu deus e ainda saiu espalhando mentiras sobre ele. Com todo respeito, meu rei, mas como posso defender esses caras?
As palavras inflamadas podiam levar semanas, até meses, para chegarem ao destinatário. Longas esperas sempre fizeram parte do processo de enviar cartas — que foi, por muito tempo, uma das principais formas de fazer mensagens atravessarem enormes distâncias.
Desde a era dos faraós, a evolução dessa tecnologia foi sempre no sentido de tornar a comunicação mais rápida. Tão instantânea quanto se encontrar cara a cara, sem o inconveniente, é claro, de precisar estar cara a cara.

“You've got mail!”
"QWERTYUIOP
Testando, 123"
Provavelmente, este foi o conteúdo do primeiro e-mail a ser enviado na história. O jovem programador Ray Tomlinson simplesmente digitou qualquer coisa. Não fazia ideia que estava criando uma ferramenta que teria uma vida tão longa quanto a da própria internet.
O ano era 1971. Ray trabalhava numa das empresas contratadas pelo governo americano para desenvolver a ARPANET, parte de um projeto militar. Época de computadores enormes e caros. Não havia muitos no mundo. Já era possível deixar mensagens para outros usuários que compartilhavam o mesmo computador, mas o que Ray conseguiu criar foi um protocolo para que uma mensagem saísse de uma máquina e chegasse em outra.
"O e-mail sempre pareceu algo que qualquer pessoa com conexão de rede desejaria. Mas na época havia provavelmente 1000 usuários na ARPANET. Existiam cerca de 20 máquinas; cada uma com 40 ou 50 usuários. É muita gente, se você tiver que colocar todos em sua agenda de contatos, mas não tanto quando você pensa no tamanho do mundo como um todo."
— Ray Tomlinson, o inventor do e-mail, nesta entrevista
Era um tipo de comunicação reservado para poucas pessoas. Mas não demorou muito para ganhar uma escala gigantesca. Ali pelos anos 90, quando surgiu o Hotmail oferecendo o primeiro serviço grátis de e-mails, o número de usuários subiu para milhões. Hoje, mais da metade da população mundial usa e-mail.
Ter um endereço de e-mail é o requisito mínimo para acessar a maioria dos serviços disponíveis na internet atualmente. É a sua identidade digital.
O e-mail também se tornou muito popular pela sua versatilidade: serve para conversas pessoais, declarações de amor, brigas, troca de farpas, convites, comunicação profissional, acadêmica, governamental, envio de correntes, golpes, divulgação de produtos e serviços, recebimento de notícias ou até de textos literários.
Em questão de segundos, uma mensagem enviada chega ao destinatário em qualquer parte do planeta. Graças a essa facilidade de envio e acesso, bilhões de e-mails são disparados todos os dias. A estimativa é que 46% desse volume diário de mensagens seja spam.
Uma heavy user dos Correios
Corta para o Brasil, início dos anos 2000: minha rede social favorita na adolescência foram as cartas. Embora já existisse Orkut, Fotolog, ICQ, eu tinha longas conversas com meus amigos em papéis que chegavam dentro de envelopes.
Não é de hoje que tenho amizades à distância. Na época, meus melhores amigos também estavam espalhados pelo Brasil inteiro. Eram desenhistas, zineiros, otakus, metaleiros, estudantes de Letras, enfim, só gente doida.
Nossas conversas se estendiam por meses, em um processo que envolvia:
esperar ansiosamente pela hora em que o carteiro passava;
olhar regularmente a caixinha do correio;
me deliciar quando chegava um pacotinho recheado de páginas e mais páginas escritas à mão, às vezes acompanhadas de desenhos, zines, fotografias;
colocar um CD para tocar e sentar na mesa da cozinha para começar a escrever de volta — e era absolutamente normal levar semanas para responder a uma única cartinha;
ir com tanta frequência aos Correios a ponto de ser reconhecida pelos funcionários;
postar uma remessa de cartinhas e esperar mais algumas semanas até o carteiro trazer a resposta;
começar o ciclo todo outra vez.
Foi por carta que mandei a um amigo das Letras um dos primeiros contos que escrevi. Meses depois, recebi o conto de volta, cheio de sugestões e comentários que ele anotou à mão no papel. Foi a primeira vez que recebi uma história minha revisada. Aprendi um monte com aquelas anotações, inclusive a exercitar nos meus textos o olhar de edição.
Esse mesmo amigo, um dos que me escreviam as cartas mais longas, tinha um blog de literatura. No Blogspot! Era como conhecer alguém importante. Eu achava tão chique alguém ter um domínio próprio na rede mundial de computadores. Inspirada nele, um dia criei um blog para postar meus textos.
Deu nisso que você está vendo. É o que faço até hoje.
🌱 espaço patrocinado 🌱
Criar não precisa ser solitário
Ser artista pode ser um caminho muito solitário. É difícil encontrar quem entenda o que a gente faz, que compartilhe da nossa visão, que nos incentive a ir adiante.
A Seiva, que traz livros e cursos maravilhosos sobre arte & criatividade, tem uma novidade para quem está em busca de um ambiente de conexão e troca de ideias: o Clube Seiva!
Mais que uma comunidade, o Clube Seiva é um programa contínuo de formação criativa. Nele, você pode mergulhar em um ano inteiro de atividades e experiências pensadas para estimular sua criatividade e te conectar a outras pessoas criativas.
Todo sábado, você pode participar das Manhãs Criativas. São oficinas com artistas de diferentes áreas, em encontros leves para aprender, criar juntos, explorar novas técnicas e expandir seus horizontes.
Alguns spoilers: já teve oficina com a Paula Siebra sobre criação de Cadernos de Imaginário, vai rolar de Construção de Mundos com o Felipe Castilho, de curta-metragem, fotografia, colagens e muito mais!
Outra proposta bem legal é a Cartinha Misteriosa: a cada quinze dias, os assinantes recebem na caixa de entrada uma carta escrita por um artista surpresa compartilhando referências, dicas e preciosos aprendizados, para você ver que não está só na sua caminhada.
Além disso, o Clube tem grupos exclusivos, clube de leitura, playlists, videoteca de cursos, descontos... Fica meu convite para entrar no site e conhecer todas as vantagens. Te interessou? Você pode usar o cupom ALINEVALEK para descolar um desconto maroto de 10% na sua matrícula:
De volta às cartinhas
Para mim é sempre reconfortante voltar no tempo e ver que continuamos a fazer o que as pessoinhas do passado já faziam. Mudou a velocidade, mudou a escala, mas o objetivo segue o mesmo: vencer as distâncias, chegar mais perto, conseguir comunicar o que achamos que importa, nutrir birras e picuinhas que se arrastam por anos.
Mandar cartas já foi caro, demorado, um luxo para poucos. Hoje, até uma reles plebeia como eu pode mandar um pacote cheio de palavras para milhares de pessoas, ao mesmo tempo, em um piscar de olhos! Não é uma maravilha?
Estou vivendo no sonho dos faraós.
Nunca foi tão fácil e rápido me comunicar com tantas pessoas, mesmo assim, vivo reclamando porque o sistema que me permite fazer isso é falho e longe do ideal.
Acontece que as placas tectônicas da internet não param de se mover. Estamos passando por outro momento parecido com a popularização dos e-mails de algumas décadas atrás. Dessa vez, com um boom das newsletters (que, se você lê em voz alta, soa como bundas newsletters), essa forma híbrida de e-mail com blog que tem sido apresentada como uma alternativa à saturação das redes sociais mediadas por algoritmos (embora o Substack, em parte responsável por esse boom, esteja muito interessado em se tornar uma rede social mediada por algoritmo).
O volume de novas newsletters tem aumentado tanto nos últimos meses, que o comportamento de e-mails disparados pelo Substack tem sido interpretado como spam pelos clientes de e-mail (Gmail, Yahoo, Outlook, etc).
Um dos motivos é que alguns autores de newsletters têm adicionado e-mails às suas bases sem a permissão das pessoas, o que é a própria definição de fazer spam. O próprio sistema do Substack leva as pessoas ao engano quando assinam uma newsletter, levando-as a assinar junto uma penca delas sem perceber. Tratar consentimento como uma linha borrada é a tendência do momento.
Muita gente têm ficado brava de estar recebendo no e-mail um monte de newsletters que não assinou. Enquanto isso, tenho encontrado cada vez mais newsletters que escolhi assinar e leio com frequência na minha pasta de spam.
Talvez eu também esteja caindo no spam.
Não adiantou muito fugir das redes sociais por não entregarem mais nossas mensagens para quem escolheu acompanhá-las: quem envia newsletters está enfrentando o mesmo problema. Não há nenhuma garantia de que nossas newsletters estejam chegando a quem as assinou. E, mesmo quando chegam, não há garantia nenhuma de que serão lidas, ou sequer encontradas, em meio a uma enxurrada de e-mails.
Aliás, se você não gosta de receber meus e-mails, se eles ficam entulhando sua caixa de entrada, faça um favor a nós dois e aperte o botão “cancelar inscrição” mais próximo. Pelo amor de Rá, a última coisa que eu quero é ficar falando com quem não tem interesse em me ouvir!
Olho para o crescimento dos números com alguma preocupação. Porque o Substack não oferece uma forma decente de filtrar quem de fato está lendo a minha newsletter e separar de quem nunca abriu uma edição.
Assim que entro aqui para mandar a newsletter, a primeira coisa que vejo é um painel que esfrega na minha cara um bocado de números que dizem o quanto minha newsletter cresceu, olha quanta gente tem aqui, quando, na verdade, são estatísticas pouco confiáveis, porque o e-mail envolve questões técnicas que escapam ao controle do Substack. Por exemplo, os filtros de spam, ou sistemas de proteção de privacidade que inflam as taxas de abertura das newsletters.
Como saber quantas pessoas estão realmente lendo o que escrevo? Se os e-mails estão sendo entregues? Quais são as reais taxas de abertura?
Ou talvez a pergunta seja: por que me importar com isso?
Como usuária dos Correios, eu deveria me lembrar que mandar cartas sempre envolve alguma chance de extravio.
A espera ainda faz parte

Me encontrei na newsletter porque ela reúne tudo o que mais gosto de fazer desde a juventude: distribuir minhas publicações independentes, escrever páginas e páginas do que está se passando na minha cabeça e, a partir do que escrevo, poder me conectar com outros esquisitos como eu espalhados pelo mundo! Claro que se tornaria meu meio de comunicação favorito.
Essa viagem no tempo para falar de e-mail me fez perceber o que me atrai nesse formato, e que vem desde o tempo das cartas: é um meio de comunicação privado. Algo enviado de pessoa para pessoa. O que me mantém escrevendo esta newsletter é o mesmo que me levava a atravessar a cidade a pé para postar um punhado de cartas nos Correios: a busca por uma conexão, por um espaço de intimidade com alguém que está distante.
“Mais do que métricas, a newsletter me proporcionou uma experiência mais humana. Pude entender melhor as pessoas que liam meus textos, pude aprender a dialogar com elas (e ainda aprendo), descobri ainda a necessidade que temos de estabelecer um contato mais próximo, mais íntimo. Tanto para quem ouve, quanto para quem escreve.”
— Escrevi há mais de uma década, mas tá valendo até hoje.
Não é nas estatísticas do Substack que encontro a resposta para essa busca. Não é a % da taxa de abertura que me garante que minhas palavras estejam chegando do outro lado. Desde a época em que mando cartinhas dentro de envelopes, só conheço uma maneira de ter certeza que chegaram ao destinatário: quando recebo uma resposta.
Portanto, você sempre pode responder aos meus e-mails, que eles continuam chegando para mim do jeitinho que Ray Tomlinson idealizou. Essa sim é uma forma confiável de saber que você continua aí, do outro lado dessa conversa.
O que também se manteve desde os antigos egípcios e que talvez torne as cartas (até os e-mails!) como uma forma de comunicação tão poderosa, seja justamente o tempo de espera envolvido no processo.
Talvez esse espaço de tempo não fosse o problema a ser resolvido por formas de comunicação cada vez mais instantâneas. Talvez a espera seja parte essencial do que precisamos para as nossas conversas e relações. Uma pausa para digerir o que está sendo dito, uma pausa para pensar no que responder.
Essa é uma das maravilhas do e-mail, ao contrário de mensagens em chats e redes sociais, onde há a pressão por respostas imediatas.
Você manda sua mensagem, torce para que chegue, então esquece e vai cuidar da sua vida. Um dia, que você não sabe qual, a pessoa lê. Um dia, quem sabe, ela te responde. E, justamente porque nada na vida é garantido, essa resposta será valiosa.
Exatamente como vou fazer aqui quando clicar em enviar.
Um beijo,
Aline ótimo texto, não sabia da parte dos faraós, estou com 87 anos, e tudo o que você comenta de cartas eu passei e utilizei, quando jovem(por volta dos 17 /18 /19 , enviar anos) tinha um grupo denominado Courrier , que a gente se inscrevia para se corresponder com pessoas do exterior ( tive pessoas da União Soviética - China - USA- Canadá-França - Inglaterra - Espanha e Ilhas Maurícios, e entidades : Russia - China - Países Bálticos ) endereços que eu escolhi quando me inscrevi, era uma delicia buscarmos nos comunicar em Inglês- Francês ou Português (Russia - China e Bálticos) enviar fotos de Brasília - SãoPaulo - Rio ...) explicar como éramos = pessoas e o pais ... o encanto era que Brasilia tinha acabado de entrar em atividades , trocávamos as cartas - cartões-postais e revistas e Jornal de Cultura que tínhamos na época e em troca recebia algo semelhante, eram correspondências via aérea (tinham um bom custo) teve momentos que precisava adm o processo e tempo e R$ para poder continuar e assim fizemos por um bom tempo , ainda tenho em arquivo vários envelopes das cartas recebidas , as cartas e demais materiais acabaram se perdendo ao longo do tempo,...Uma outra etapa de cartas, nasceram já adulto , quando comecei a namorar a minha esposa (estamos juntos há 59 anos e 3 de namoro, ela residia no interior de São Paulo e eu na Capital e semanalmente nos comunicávamos , cartas indo e cartas vindo ... cartões e fotos entre outras ...!!! temos todas estas cartas entre nós estão em arquivo pessoal em nossa residência..Neste meio tempo 1990 surgiu a Internet (fui Gestor de TI e Inovação por mais 60 anos ) e ai surgiu A REDE .. emails..e tudo mais que temos hoje disponível e que já faziam parte do meio ambiente de trabalho previsão do que estava vindo ... desculpa alonguei de mais o texto .. abraços, gosto muito de ler seus textos ..
PS : O sistema de email tem procedimentos para validar entrega e leitura ou abertura por parte do destinatário .
Eu li sol de Rá(chando na cabeça). Kkkk...Desculpa, não resisti. Texto excelente como sempre!