De quatro em quatro anos o Brasil tem a chance de dizer quem é. Da última vez usou esse poder para dizer que é um brucutu mal-amado, violento, que se orgulha de ser chucro e cafona. Um valentão de arma na cintura, um mentiroso compulsivo, um trambiqueiro, um racista convicto que usa a camisa amarela da seleção como o novo capuz da Ku Klux Klan, um alucinado que aplaude toda e qualquer forma de destruição.
O Brasil, claro, não se resume a isso. Eu não me identifico com essa figura e espero que você que me lê também não. Mas não conseguimos fugir dessa presença. É todo dia acordar para um novo absurdo, comer desespero no café-da-manhã, encarar os vazios deixados por essa infestação de ódio, não aguentar mais ter que viver e trabalhar com a bota da barbárie esmagando nosso pescoço. O coturno pode ser figura de linguagem, mas o sufocamento é real.
Quem senta na cadeira mais importante do Estado pode estar longe de representar a totalidade da identidade brasileira, mas tem enorme influência em desenhar seus contornos. Quem senta nessa cadeira tem o poder de pilotar esse Megazord para uma nova direção… ou para a beira do precipício. Podemos não concordar, resistir, mas somos arrastados juntos. E, neste momento, a beira do precipício já parece um lugar privilegiado, a nostalgia de um lugar seguro, porque há muito tempo estamos em queda livre no abismo, que pode ainda ser mais profundo do que imaginamos.
Bolsonaro pode não ser muito fã de trabalhar, mas sejamos justos em admitir que em uma coisa ele se empenhou bastante nos últimos quatro anos: em demonstrar que pode nos levar mais fundo para esse buraco, que pode tornar tudo consideravelmente pior, que pode nos torturar com ainda mais constrangimento e romper com qualquer limite que esse fundo do poço possa ter.
Uma fatia da população insiste em querer repetir o desastre. Eu juro que tento entender. Por que acham que esse projeto de aniquilação merece continuidade? Quais foram os grandes feitos desse governo? O que o povo ganhou além de mais armas circulando, mais agrotóxicos na comida, tudo mais caro, mais mortes na pandemia, mais fome, mais séculos de sigilo, mais mentiras, mais Amazônia devastada, mais viagra para os brochas das Forças Armadas?
Mesmo do ponto de vista de seus defensores, esse governo fez quase nada. Queriam o fim da corrupção? Receberam esquemas de rachadinha, desvio de dinheiro da vacina, propina paga em ouro para pastor, mais de cinquenta imóveis comprados em dinheiro vivo que Bolsonaro se recusa a explicar de onde veio. Queriam intervenção militar, autoritarismo, um presidente que fechasse o Congresso e o STF? Receberam a tchutchuca do Centrão.
Inútil apresentar os fatos para alguém convertido à seita bolsonarista. Admiro quem tenta. Conversar com um deles é ser tragado para um vórtex de irracionalidade: quanto mais são confrontados com a realidade, com mais agressividade se agarram às fantasias que criaram. É bizarro observar o nível de desligamento da realidade que alguém precisa manter para insistir no voto ao Bolsonaro, como se o PT voltar ao poder fosse a pior coisa que poderia acontecer. “O PT acabou com o Brasil, o PT acabou com o Brasil!!”, repete a pessoa afundada na merda até o pescoço. A lógica de uma pessoa dessas foi com Deus há muito tempo.
Uma hipótese é que quem apostou nesse absurdo investiu tanta energia, fez disso parte tão enraizada de sua identidade, brigou com tanta gente, teve que bancar tanta convicção de que esse era o caminho de um Brasil “melhor”, que mesmo vendo que não era, precisou embarcar na loucura até o final. O custo de uma ilusão despedaçada é muito maior, a ponto de alguém preferir morrer do que admitir que errou.
Outra hipótese é a de que continuam apoiando o bolsonarismo não apesar de toda a destruição que promoveu, mas justamente por causa dela. Finalmente se viram representados na figura que descrevi no início do texto. Era justamente alguém bem picareta, cruel e incompetente que queriam ver no poder, para que se sentissem autorizados a serem o que são. Um povinho que se veste de patriota, mas odeia qualquer brasileiro que não seja eles mesmos.
Existe urgência para acabar com esse circo de horrores o mais rápido possível. Mas o estrago feito nesses últimos quatro anos vai exigir tempo e MUITO trabalho para ser revertido. Quem melhor pode fazer esse trampo no momento é o Lula. Primeiro, por tudo o que ele já fez, sobretudo as políticas públicas de inclusão social (o verdadeiro motivo dessa elite minúscula e horrorosa considerá-lo um bandido). Depois, porque apenas ele foi capaz de articular a Frente Ampla pela qual tanto a sociedade implorou para conseguir proteger a democracia, já que nada que o Bolsonaro fez parece ter sido o suficiente para sofrer um impeachment (!!).
Eu quero um presidente que saiba conversar como um ser humano, que se sensibilize com o sofrimento das pessoas, que não dê declarações estapafúrdias dia sim dia também, que coloque de novo o Brasil em destaque no mundo como uma cultura e economia de respeito. Eu quero um presidente que não seja inimigo dos livros ou da ciência. Eu quero um presidente que preze pela democracia, que garanta um clima de normalidade para a gente conseguir trabalhar sem ser bombardeado pela ansiedade de não saber se vai restar algum país de pé no dia seguinte.
Isso pode parecer o básico, ou não ser o suficiente para reverter a tragédia em que nos metemos. Mas já é um começo: um líder civilizado pode inspirar a sociedade a ser civilizada também. Um líder que respeitou os processos democráticos, mesmo quando foi preso e condenado por um juiz parcial e sem lábios, em um julgamento inteiramente viciado, pode inspirar a sociedade a buscar justiça, a fazer o certo pelo certo.
Acima de tudo, eu quero um presidente que me inspire esperança, em vez de repulsa a cada vez que abre a boca. Chega de ter que me deparar com a cara deformada e com o nome desse fascista escroto todos os dias no noticiário e nas redes sociais! Não há saúde mental que dê conta.
Ainda que Lula vença no primeiro turno, um cenário que se desenha provável, os seguidores dessa seita bolsonarista permanecerão entre nós. Alguns, próximos do nosso convívio. Muitos, inclusive, ocupando posições influentes, na mídia ou fora dela. Sem o poder da máquina estatal alimentando esse pessoal com mamatas, ódio e teorias conspiratórias, essa seita tende a murchar como a piroca flácida dos líderes que veneram. Isso não significa que serão menos perigosos, que a polarização acabou. Continuarão barulhentos, como se gritassem “olhem para mim, vocês não podem ignorar que o Brasil também é isso!”
O problema é justamente, por mais que a gente queira negar, que o Brasil também é isso. Toda essa brutalidade que veio à tona não surgiu do nada. É como o pus escorrendo de uma ferida que permanece aberta, não cicatrizada. A ferida dos horrores da escravidão e da ditadura, jamais superadas pois nunca devidamente punidas nem remediadas. Caramba, ainda hoje não se chega a um consenso de que foram coisas horríveis, porque há quem justifique ou minimize! É claro que vai haver quem ache ok um presidente imitar pessoas morrendo de falta de ar no meio da pandemia.
Por isso, o trabalho não acaba quando eles forem derrotados nas urnas. Precisaremos trabalhar, cada um de nós, para não esquecer o que foi sobreviver a esta guerra. Por mais que a gente queira deixar esse episódio para trás, não podemos fingir que nada aconteceu. Pelas mais de 600 mil vítimas da pandemia e tantas outras milhões que tiveram suas vidas devastadas pelo descaso desse governo, eles precisam ser responsabilizados e punidos. Pela corrupção escancarada, eles precisam ser responsabilizados e punidos. Pelas vítimas de perseguição política fomentada por eles, eles precisam ser responsabilizados e punidos.
Não podemos esquecer dos nomes de cada responsável por essa tragédia, das celebridades que apoiaram ou se calaram, da Regina Duarte dizendo para sermos leves e não carregarmos um cemitério nas costas, dos que lucraram às custas do nosso sofrimento, de cada oportunista que embarcou nesse governo. Não podemos esquecer da responsabilidade da imprensa em normalizar os absurdos e de pavimentar a rampa que Bolsonaro usou para subir o Planalto, ao fomentar o ódio que criou esses zumbis de uma nota só “o pT dEStruIu o bRAsILiiiilL” e que hoje se voltam contra os agentes dessa mesma mídia para atacá-los e persegui-los.
Precisamos lembrar, cobrar, responsabilizar. Garantir que os crimes e todas essas ameaças não saiam impunes, ou o pus vai voltar a jorrar. Que mensagem a sociedade vai passar se nada acontecer a esses fascistas? Quem o Brasil vai se tornar dessa vez? Alguém que aprende com os erros e luta para que não se repitam? Ou uma nova versão da truculência de sempre?
“Aconteceu, portanto pode acontecer novamente. Em qualquer lugar.”
— Primo Levi
Cena pós-créditos
Um breve salto especulativo para o futuro:
Bolsonaro perde as eleições. Como é um covarde movido única e exclusivamente pelo medo de ser preso, e não tem coragem de se retirar da existência por vontade própria, vai fugir do Brasil, sumir no mundão. Ele e seus filhos vão se esconder em algum buraco como ratazanas, enquanto os processos contra eles correm na justiça, na esperança de que jamais sejam encontrados e tudo caduque. Vão ser achados sem dificuldade, pouco tempo depois, por algum descuido do Carluxo postando fotos do pai em seus passeios de lancha, com a geolocalização ativada.
Lula assume a bucha da presidência de um país em frangalhos e seu terceiro mandato é o mais difícil de todos. A imprensa volta a ser combativa e se escandaliza com absolutamente qualquer declaração do presidente: “Lula ameaça Brasil com ditadura da boa forma ao declarar que vai a academia três vezes por semana”. Os jornais voltam a usar a palavra “corrupção”, que curiosamente havia ficado no armário, fora de moda, nos últimos quatro anos.
Sérgio Moro não se elege para o Senado, mas tenta pegar uma carona na onda de criticar o presidente Lula. Tenta monetizar um canal de Youtube com críticas diárias ao seu arquiinimigo, o que apenas abastece a indústria de memes, alcançando públicos de diversos países. Tal qual os gifs de Nazaré confusa, os gringos não entendem muito bem de onde surgiu o personagem ou o que ele quer dizer, mas acham muito divertido compartilhar, o que acaba se tornando o ponto alto da excelentíssima biografia do ex-juiz.
Ciro Gomes se muda para Paris, onde toma bons vinhos pensando em Lula todas as noites. Lula até o convidou para integrar o governo em um ministério, mas o rancor de Ciro não o deixou aceitar. A vaidade é uma forma de autoritarismo difícil de escapar.
Mais sobre o diabo
Não esperava que tanta gente fosse gostar da edição passada sobre o diabo.
Se você é uma das pessoas que gostou de ler sobre o caramunhão, encontrei uma leitura que vale a pena demais. Especialmente se você escreve e se sente tolhido por uma presença que julga e reprova tudo o que você coloca no papel.
“O Censor é um tipo peculiar de demônio. Criativo e ágil, ele pode ser uma voz, uma imagem ou um sentimento. Sua especialidade é sempre dizer: não está bom o suficiente.”
— Do texto “O demônio da escrita”, de Valter Nascimento
Na imagem, pintura de Diego Rivera, “As tentações de Santo Antônio”, de 1947. Se olhar direitinho, você acha demônio também.
Escrever como forma de estar no mundo
A Bárbara Heckler e a Camila Camargo me convidaram para um papo sobre escrever-viver na newsletter delas, a Pesquisa Talks!
Contei um pouco sobre a pessoa que mais me interessa no momento, contei cenas de infância, minha relação com o desenho e o que acho dessa tal autoficção.
Você pode ler aqui:
Enquanto isso, vou fazendo o que sei: usar as palavras para dizer quem sou.
Um beijo e até a próxima,
tô desde 2018 sem entender como o jovem brasileiro encontrou no ciro gomes uma opção para qualquer coisa que fosse. as pessoas não tem acesso ao google?
enfim. tô putaça porque essa previsão da mídia sobre o terceiro mandato do Lula é real demais (de modos que podemos categorizar esse texto como horror psicológico) e eu já sei que vai continuar sendo um inferno conversar sobre política com tranquilidade até a gente morrer, mas os próximos 10 anos vão continuar nesse clima de animosidade bizarra. eu to assitindo Anos Rebeldes na Globo Play, bem devagar, e há meses quero escrever sobre o desespero que é ver o cenário de 1960-70 se repetindo over and over again 60 anos depois. (esse comentário vai virar um rant se eu continuar, então...)
continua escrevendo, Aline.
beijo.
me sentindo contemplada com a indignação presente em todo o texto, mas "condenado por um juiz parcial e sem lábios" me pegou de forma especial hahhahaha! os tempos são ruins, mas tem que ser possível ainda rir de alguma coisa...