Me falta vocabulário para lidar com a última tragédia. O que dizer, a não ser o óbvio? O Rio Grande do Sul debaixo d'água e qualquer coisa que eu possa escrever será como chegar com um rodinho de pia para tentar enxugar a correnteza. Sobretudo quando não tenho palavras de esperança, ou que consolem diante de tamanho desamparo. Já não tenho espanto, tenho raiva. Porque a história se repete. Hoje no Sul, ontem na Bahia, amanhã onde? A maior cidade da América Latina não tem um plano de contenção de desastres ambientais, embora existam ruas que alagam todo ano. Faz pouco mais de um ano a água arrastou casas e vidas em São Sebastião e ainda há pessoas vivendo em áreas de risco ou em moradias temporárias minúsculas, sem ventilação, como celas de um presídio. Os responsáveis pelo crime ambiental de Brumadinho jamais foram punidos, as vítimas ainda não indenizadas. Quem sobreviveu à lama tóxica que arrasou a cidade precisa continuar lidando com a devastação do trauma. A cidade onde nasci, às margens do Rio Doce, tem alagamentos que expulsam milhares de pessoas de casa, ano após ano. Recife está sendo engolida pela água. Maceió engolida pela terra. Episódios diferentes de uma mesma história. Estamos presos numa reprise de merda. As cenas que inundaram as telas nos últimos dias carregam o eco de um trauma. É como o impacto de um terremoto. Ou de uma bomba. Daquelas que caem do seu lado e estouram seu ouvido de um jeito que tudo o que você consegue ouvir é um zumbido que emudece tudo ao seu redor. Cada um está tentando lidar com o choque do jeito que dá, mesmo os que estão de longe, mesmo quem não é do Rio Grande do Sul. Pode não ser a sua casa submersa, mas é um trauma nacional. "...talvez pudesse dizer algo sobre a experiência latino-americana de nem sequer conseguir curar as feridas profundas da colonização, porque as desgraças se sucediam e o povo não tinha tempo de lidar com todas elas". Queria que essas palavras que escrevi ficassem só na ficção, mas as tragédias não dão sinal de que irão parar de se sobrepor. E, no meio disso tudo, ainda tem abutre tentando aprovar projetos de lei que só vão piorar esse cenário, ou fabricando notícias falsas, ou usando a tragédia para conseguir engajamento e seguidores, aproveitando para colocar seu nome sob os holofotes em um campeonato de virtude, porque, para completar, o algoritmo ajuda a alavancar tudo o que gera mais comoção, e nada gera mais comoção do que a catástrofe. E elas continuam, porque alguém está lucrando com elas. Por outro lado, é bonito demais como o povo se mobilizou para ajudar, com seus próprios braços, tempo ou recursos, a criar algum amparo para quem perdeu tudo. Cada um ajudando como pode, mandando doações, ajudando na triagem de roupas, preparando marmitas, resgatando cachorros de telhados, sendo escuta silenciosa, mandando mensagens e afeto, estando juntos na dor. Mas também é triste, triste demais que sejamos o povo das emergências, porque se há emergência é porque houve despreparo, falta de estrutura, negligência. Já existe uma vaquinha coletiva para prevenir desastres ambientais e se chama imposto. Por que nem um centavo foi usado para isso? Toda vez que algo dessa proporção acontecer, a população vai ter que se reerguer na base do PIX? É obrigação do Estado ter um plano, preparar as cidades para um clima que já mudou, investir em infraestrutura básica para proteger a vida dos cidadãos. Infraestrutura, caras. É o mínimo. Normal nos sentirmos sobrecarregadas, impotentes, se tentamos tapar com nossas próprias mãos as fraturas colossais desse país que ficam expostas sempre que chove, ou quando um vírus mortal aparece. Normal nossos esforços parecerem minúsculos diante da enormidade da perda. Então peço que me perdoe por esse longo desabafo, por não ter muito a oferecer na edição de hoje a não ser uma sequência de palavras óbvias, que não resolvem nada, mas que é tudo que andou ocupando meu pensamento nos últimos dias.
A essa altura você já deve conhecer várias iniciativas que estão precisando de doações e provável que já tenha feito algumas. É muita gente precisando de ajuda, em inúmeras frentes. Mas não custa compartilhar aqui mais algumas.
A Cozinha Solidária do MTST está preparando refeições para alimentar as pessoas desabrigadas. PIX: enchentes@apoia.se
A temperatura já começou a cair no Sul e as pessoas estão precisando urgente de agasalhos. Para doar roupas, água, itens de higiene pessoal, etc., você pode ver no site Doando Brasil qual o ponto de coleta mais próximo de onde você mora.
A editora Jambô, sediada no Rio Grande do Sul, teve vários colaboradores afetados pela enchente. A campanha de lançamento do novo livro de Tormenta vai arrecadar fundos para ajudar essas pessoas. Você pode deixar um apoio doação aqui.
A quadrinista Tali Grass teve o apartamento submerso e precisa de ajuda para custear suas despesas atuais e para recuperar tudo que perdeu no alagamento. PIX: talitagrass@gmail.com
Cada um faz o que está ao seu alcance, fala com quem está ao seu alcance. Sentir o que está ao seu alcance também importa muito. Ainda que seja tristeza, impotência, cansaço. O que vamos fazer disso, ainda não sei. Mas vamos precisar uns dos outros para descobrir.
Um beijo,
Aline.
A rede social tá demais pra mim, não consigo ver a capitalização da dor alheia, o deboche com o sofrimento, a negação, minha nossa, em quantos tipos e escalas as pessoas ainda conseguem fechar os olhos pro óbvio?! Não tô aguentando não.
Infelizmente temos um cultura anti preparo, digo como servidora pública o que vejo na prática. O correto em áreas de risco é ser feito simulação com os moradores e Defesa Civil para prepará-los, afinal que adiante um plano se ninguém sabe do plano não é?! O problema é que a população encara isso como má vontade do poder público, que não faz obras para impedir que o problema ocorra (sendo que muitas situações não dá pra resolver, vc tem que conviver e reduzir danos); moral da história: esses treinamentos nunca são feitos, pra não queimar a imagem do gestor.
Outro exemplo são as placas indicando áreas de inundação, quase lincharam o prefeito de São Paulo quando colocaram essas placas pela cidade... Enfim, podíamos listar longos exemplos de que nós brasileiros odiamos estar preparados para qualquer coisa.
Mas, assim como você, já não tenho espanto, tenho raiva.