Experiência bem típica alemã é acumular garrafas vazias em um canto da casa. Elas ficam ali por dias, esperando, até que sejam o suficiente para encher uma sacolona. É o momento de levá-las ao mercado mais próximo, onde uma fila de pessoas, também com suas sacolonas, também cheias de garrafas vazias, esperam sua vez de enfiá-las uma a uma, também em fila, no buraco da máquina de Pfand. As garrafas plásticas de suco de laranja fazem um estalido de amassado gostoso quando deslizam para o interior da máquina. Essas valem vinte e cinco centavos. As latas de alumínio também são bem cotadas. As garrafas grossas e escuras de cerveja valem oito. Não muito, mas geralmente elas estão em maior quantidade. Nem todas se transformam em moedas, mas cada garrafa tem um lugar certo. Na rua, há contêineres para vidros de cada cor. Nunca sei onde descartar a garrafa do Pinot Grigio que costumo tomar. É verde, mas não o verde inquestionável da garrafa de azeite; é um verde-claro, quase transparente, e decido que isso é o suficiente para credenciá-la ao contêiner de vidros brancos.
Confusão maior cometo ao tentar colocar as palavras na ordem certa. Tudo aqui tem o seu lugar adequado, das garrafas aos verbos. Os principais precisam estar sempre na segunda posição da frase. Exceto quando é uma subordinada, que é quando o verbo deve ir para o final. Sou apressada demais para esperar pelo bonito do verbo, quero chegar no sentido logo. Duro está sendo encontrar um lugar para encaixar a minha pressa. Tudo o que estou vivendo aqui me grita: é preciso tempo. Outro dia percebi que a moça do caixa, e devia ser seu primeiro dia de trabalho, anunciou o valor da minha compra trocando a ordem da dezena e da unidade. Em alemão, é invertido. Ela se corrigiu no ato, mas o deslize me revelou alguém que, como eu, também está aprendendo. Alguém que também pensa nas dezenas primeiro, nas unidades depois. Dei um sorriso, entreguei o dinheiro e demonstrei que a entendi, que a entendo demais. Entender os centavos aqui já é muita coisa.
É um lugar privilegiado esse, que ocupo hoje, entendendo tudo pela metade, em um alemão cheio de buracos que não deixa dúvidas de que não sou daqui. Você passa a se encaixar em um entre, um nem aqui e nem lá, uma garrafa nem verde nem branca. Esse pode ser o lugar de onde você perde as piadas todas e aplaude pelos motivos errados, mas também onde você subitamente pode enxergar que entender nada tem a ver com o idioma que se fala. Encontro outras pessoas que estão neste mesmo "entre" e passo a me identificar imensamente com quem também está no meio do caminho, por entender, mais do que as palavras que elas me dizem em um idioma que não é o delas, tampouco o meu, o que significa pensar em uma língua que está tão longe de casa. Que chegar na precisão de traduzir quem você é no seu idioma materno não importa tanto quanto o movimento de aproximação que se faz na tentativa de entrar em contato com um Outro tão diferente de você.
Tenho experiência em não ser daqui, esse aqui podendo ser vários lugares, inclusive onde se fala português. A novidade de ser estrangeira, dessa vez fora do Brasil, é poder errar. Gasto como se fosse um superpoder, essa licença para não saber, e me atrapalhar, e poder fazer perguntas sobre o que parece bobo, óbvio, e não ter medo de mostrar que sou ignorante sobre o mundo, porque essa ignorância é também meu encanto em descobrir o que é novo. É um alívio e ao mesmo tempo um aprendizado difícil, esse de abaixar a guarda, se, de onde vim, é preciso mostrar que se sabe. Antes que se pergunte, antes que o outro responda. É preciso sair às ruas com cara de quem sabe aonde vai, porque se você deixar escapar que não tem certeza, que está perdido, que você não é dali, vai aparecer alguém para pisar na sua cabeça. Esconde esse seu sotaque, antes que percebam. E te interrompem porque já sabem o que você vai dizer, já sabem que não importa, já sabem que elas têm uma história melhor. Se o verbo ficasse no final, esperariam? Em São Paulo eu também tinha muita pressa, por acreditar estar muito atrasada. Mas era só a pressão de ouvir todo mundo achando que sabe um pouco mais do que eu. Como assim você não dirige? Como assim você não conhece o autor Fulano de Tal? Como assim você nunca foi em Tal Lugar? Como assim você não sabe? Mudar de classe social pode ser mais difícil do que mudar de país.
Esses dias leitoras me perguntaram se eu, por estar vivendo como estrangeira em outro país, me identificava com a Corina, minha personagem que se sente uma eterna estrangeira no fundo do oceano. Não precisava ter saído do Brasil para saber dessa sensação. Não por acaso ele aparece em Corina, não por acaso escrevi um livro inteirinho par tentar descobrir de onde vem o desentendimento, para testar se a comunicação é mesmo impossível. Mesmo entre pessoas que falam a mesma língua e compartilham da mesma cultura existe o mal-entendido, o ruído, o desencontro. Como se isso fosse um aspecto intrínseco da linguagem. No romance, pude levar isso ao extremo. Colocar pessoas bem diferentes convivendo no isolamento por um longo tempo, observar por que elas não conseguem conversar, observar por que se comunicam tão mal umas com as outras e ainda assim acham, coitadas, que são capazes de entender sinais enviados por outras espécies. Entender nada tem a ver com idioma. Talvez justamente por estar tão acostumada a me sentir deslocada é que senti menos medo de explorar as águas desconhecidas de uma outra cultura, de uma nova língua. Agora que estou longe das minhas origens é que sinto que estou no lugar certo para ter a sensação de ser uma estrangeira. Penso se não é exatamente isso que a Corina tanto buscava mergulhando.
Imigrantes
Novidade
É preciso tempo. E voltar ao mesmo lugar várias vezes. Enxergar o texto por novos ângulos. Criar novos caminhos para as palavras passarem com mais força. Essa é a proposta do meu novo curso Escrita é Reescrita, em que vamos encontrar novas possibilidades para os textos que já escrevemos ou para as histórias que guardamos na gaveta.
O curso vai ser disponibilizado para quem me apoia com R$ 20 ou mais por mês (pacote Pesquisador), tanto pelo Apoia-se quanto pelo Substack.
Serão a princípio 3 aulas gravadas, que você poderá assistir no seu tempo. As aulas serão liberadas aos poucos. Você pode acessar o curso (aulas + materiais + fórum para alunos) enquanto durar o seu apoio.
A ideia é que o próprio curso se modifique com o tempo. Que é o que a reescrita faz. Assim, se eu tiver algo novo para compartilhar, adiciono ao curso, ou mesmo posso criar uma nova aula a partir das dúvidas e dos textos produzidos pelos alunos.
A primeira aula será liberada no dia 8 de setembro. Apoiadores receberão avisos da aula + detalhes explicadinhos por email.
Já me apoia com outro valor, mas quer ter acesso às aulas? Você pode mudar o valor do seu apoio a qualquer momento no painel do Apoia-se. Se ainda não apoia, fica o convite para vir para a turma:
Nos últimos capítulos...
Depois de conhecer o castelo onde viveu a família real antes de fugir para o Brasil, escrevi sobre o que há em comum entre a Rainha de Portugal, a Xuxa e a Barbie:
É um privilégio ter você aí lendo as observações que tenho para te trazer desse mundo do “entre”. Suas palavras são sempre bem-vindas. Você pode mandá-las para mim respondendo a este email ou deixando um comentário.
A gente se encontra numa próxima edição.
Um beijo, fique bem.
Eu fiz uma tatuagem no mês passado que reflete exatamente essa sensação: Antevasin. É o aprendiz que sai do seu lugar para aprender "na fronteira". Ele é o eterno aprendiz e a partir do momento que saiu, não "se encaixa" mais no lugar de origem. A questão é que ele tbm não pertence ao lugar onde está. Ficamos nesse embate do não pertencimento, de sermos estrangeiros (também na nossa própria terra).
Adorei! Principalmente a parte do "entre". Sobretudo, me fez pensar imediatamente numa música do uruguaio Jorge Drexler, que diz "yo no soy de aquí, pero tu tampoco". Compartilho o link, espero que goste! https://open.spotify.com/track/7pBoi7yWCPzn3UjeMsGKg6?si=0Z4FReVPSeWvEjrp-t9q3g&context=spotify%3Aplaylist%3A37i9dQZF1DZ06evO2BSlKE