Fantasia
Quando criança, brinquei muito de interpretar papéis com os amiguinhos de prédio. Fantasiar-se, sem precisar de fantasia. Bastava imaginar.
Às vezes, pegávamos emprestados universos já prontos. Podia ser de Power Rangers, de Cavaleiros do Zodíaco. Ou os super-heróis dos quadrinhos. Então escolhíamos qual papel representar, dando vida aos personagens que cada um mais gostava.
Às vezes, inventávamos nossos próprios mundos e personagens, como cineastas de filmes inéditos. Impressionante a facilidade com que um grupo de crianças brasileiras nos anos 90, ao brincar de improvisar histórias, começava a espontaneamente ir para o caminho das tragédias gregas.
As tragédias que inventávamos também eram cheias de amor, violência e alguém se dando mal no final. Como quando os meninos fingiam ser de gangues rivais, disputando o amor das garotas, até que a rivalidade explodia em banho de sangue: meu “par romântico” estatelado no chão, depois da dramatização de uma luta. Para ter graça, precisava ter algum tipo de guerra. Era como nossas cabecinhas operavam, alimentadas com muito Nesquik e histórias cheias de super-heróis nutrindo tensão sexual uns com os outros no intervalo entre as sessões de pancadaria.
As conversas que rolaram na internet essa semana sobre monogamia me fizeram lembrar disso. E como, mesmo adultos, principalmente adultos, os jogos de interpretar papéis continuam. Relacionamentos acabam sendo meio teatro. Ou jogo. Conscientemente ou não, escolhemos nossas máscaras. Contracenamos. Criamos juntos uma história. Sobre o quê? Qual a posição que você e eu assumimos na cena?
A monogamia é um desses roteiros prontos que tomamos de empréstimo para contar nossas histórias por cima. Não é o único. Existem outras possibilidades de brincadeiras disponíveis para reproduzir ou experimentar. Mas é o modelo mais repetido, de maior audiência, encenado há mais tempo, por muita gente: tem papéis bem definidos e uma variedade de elementos que são um prato cheio para criar histórias com amor, violência e alguém se dando mal no final. Não que fora do roteiro da monogamia heterossexual estejamos totalmente livres disso. Por que gente é um bicho tão fissurado em tragédias, hein?
Fantasias não são necessariamente ruins. Usamos o tempo todo. Tesão e imaginação com muita frequência se retroalimentam. Perceber que nas relações assumimos determinados papéis é, na verdade, perceber que é possível escolher o papel que queremos representar e em qual peça desejamos atuar.
Somos animais de corpo e afeto, buscando companhia, seja de qual natureza for, em meio a um Universo hostil, indiferente à nossa presença. Enquanto não morremos, brincamos que somos os seres mais importantes na história de alguém. Fingimos que sabemos o roteiro para o final feliz e fantasiamos que é este o roteiro que vivemos — seja ele o modelo padrão ou o que se propõe fora dele.
A fantasia adoça a existência, por isso tão fácil se perder dentro dela. Quanto mais imersas no papel, mais confuso fica o objeto do amor. Ficamos assim, perdidas na personagem, sem saber se estamos nos relacionando com aquela pessoa ou com a fantasia que a reveste.
A fantasia, em minha opinião, é o clichê determinante da condição queer feminina. Não é à toa que fazemos piadas sobre lésbicas que decidem morar juntas no segundo encontro. Encontrar desejo, amor e prazer no dia a dia sem ter de aturar merda de homem é uma bela definição provisória do paraíso.
Na literatura da violência doméstica queer, faltam referências a esse sonho destruído e isso se torna uma violação comparável a um olho roxo, um pulso torcido. (…) Reconhecer a insuficiência desse idealismo é quase tão doloroso quanto reconhecer que nesse aspecto somos iguais aos héteros: estamos na merda, igual a todo mundo. Toda essa fantasia é um ato de extremo otimismo, ou, se preferir, uma versão menos generosa, de extrema arrogância.
— Carmen Maria Machado, em “Na casa dos sonhos”, tradução de Ana Guadalupe.
Segredo
Algo que se guarda ou se esconde. Quem tem um segredo carrega um tipo de poder, que se manifesta na possibilidade de revelá-lo — ou não.
O segredo é um espaço restrito, um pedaço de solidão. Por isso compartilhar um segredo com alguém cria vínculos poderosos. É uma das formas mais emocionantes de dizer “eu confio em você”. Porque há algo em risco, algo que efetivamente pode ser perdido caso não seja guardado.
O segredo se torna um pacto. Como o que ocorre na ficção, quando o autor conta ao leitor o que é secreto ou oculto aos personagens. Mas tanto pode conectar quanto separar; na historinha da monogamia, por exemplo, o segredo costuma aparecer em forma de traição. Aquilo que se esconde do parceiro — geralmente, outro parceiro. Às vezes, menos que isso. A ruptura é a consequência esperada.
A traição parece ser um desvio da relação que se configura de forma monogâmica — como assim, um pedaço da outra parte do casal a qual não tenho acesso? — e portanto, algo que não deveria estar ali. Mas, pelo contrário, a traição é parte integrante do roteiro da monogamia, algo que justifica a rigidez de suas regras. O que seria da monogamia, o que seriam das novelas, o que seria da bilionária indústria da música de dor de corno sem a instituição da traição?
Lembrando que o segredo é um ingrediente fundamental nas tragédias: quando revelado, é aquele conhecimento capaz de destroçar o personagem.
Das minhas brincadeiras favoritas de roleplay na infância estavam as atuações no mundo de Caverna do Dragão. A personagem que eu escolhia interpretar era a Sheila, ainda que achassem o poder dela o mais inútil; nada mais que uma mocinha indefesa. Já eu via de outra forma. Me atraía demais a ideia de usar a minha capa da invisibilidade para bisbilhotar os outros sem que me descobrissem.
Me compartilhe com as pessoas que você gosta. Nossa relação não precisa ser exclusiva.
Mapa Brava é uma iniciativa de mapear poetas das regiões Norte e Nordeste. No site dá para conhecer as poetas, seus escritos e até suas vozes. (via Jamille Anahata)
Imagens do repugnante também podem seduzir.
— Adelaide Ivánova em uma leitura arrepiante. (via Rodrigo no grupo dos valekers)
Quer melhorar o amanhã? Faz um favor pra si, aprenda com o ontem
— MC Rashid mandou apenas verdades nesses versos com participação de Chico César.
Me arrumo quando você vem porque assim posso escolher te dar ou não o privilégio de ver quem sou de verdade. É um poder que você precisa conquistar e que você só tem quando estou suada e descabelada na cama, rotina que não reservo pra mais ninguém. É um jeito de mostrar que levo essa interação a sério e também de definir um limite: você é bem-vindo, mas não é de casa.
— Gaía Passareli, em sua deliciosa newsletter.
Falar em newsletter, parece que a do Moreno e sua coleção fabulosa de links tá de volta. Vamos observar.
A newsletter do Davi Rocha é um refresco de diversão mesmo quando fala de tubarões devorando pessoas teimosas.
Em tempo: participei do evento brasiliense Bibliofest e a conversa ficou registrada aqui.
“A arte é um lembrete de que você é mais que um corpo e sua respectiva mágoa”.
Nada melhor que essas palavras de Carmen Maria Machado para fechar esta edição. Uma explicação possível para a importância da fantasia nas nossas vidinhas miseráveis. Não precisa ser tragédia se não a imaginarmos assim.
Sob o efeito do gin numa sexta à noite, me despeço. Dúvidas, críticas ou sugestões sobre monogamia? Deixe nos comentários, vamos conversar e encontrar soluções para este grande problema da humanidade.
E se você chegou a este texto por algum caminho labiríntico da internet, saiba que assinar para receber no seu email é muito mais gostoso.
Até a próxima.
Um beijaço,
Aline.
a questão do jogo, do teatro, dos papeis e personagens que assumimos, me fez lembrar (em plena manhã de sábado) de um capítulo que li durante meu mestrado. chama 'teatralidad y disidencia', do pesquisador espanhol José Antonio Sánchez. dois trechos:
"Es la consciencia de la representación la que sorprendentemente impone la aceptación de la realidad. La realidad se define en la consciencia de la representación. Cuando los personajes intentan comportarse espontáneamente, lo hacen mal. Cuando aceptan las leyes de la representación, sobreviven o triunfan."
e
"Cualquier interacción o acontecimiento que se produce en el marco familiar está en mayor o menor medida determinado por los roles aprendidos. Lo que entendemos como un 'actuar con naturalidad' es más bien una reproducción de patrones de comportamiento repetidos desde la infancia. El naturalismo en cuanto estilo escénico y técnica actoral fue diseñado precisamente para representar verosímilmente ese supuesto 'actuar con naturalidad' que se produce en el espacio doméstico. Pero es muy diferente actuar con naturalidad a actuar con honestidad, pues ser honesto puede requerir subvertir los roles aprendidos y provocar una ruptura de la convivencia. Quien antepone la honestidad, la espontaneidad o la sinceridad a la teatralidad vigente en el marco familiar puede ser rápidamente tachado de 'aguafiestas', 'intolerante', y sutilmente marginado en reuniones y celebraciones. Garantizar la convivencia exige muchas veces el silencio, el disimulo o directamente la representación."
Muito obrigado pela indicação, Aline. Espero que os leitores da Uma Palavra que se aventurarem na minha newsletter se divirtam :)