Quando alguém passava na frente da esfinge, mulher metade leão metade charadista, precisava responder ao enigma que ela lançava ou era estraçalhado. Muitos tentavam, muitos ficavam sem ter o que dizer, todos acabavam tendo seus ossinhos usados como palitos de dentes.
Ninguém conseguia decifrar o enigma: O que pela manhã anda sobre quatro pernas, à tarde sobre duas e à noite sobre três? Até que Édipo deu a letra: é gente. Pela infância, engatinha, na vida adulta anda sobre as duas pernas e na velhice se apoia na bengala. A esfinge não teve outra opção a não ser se lançar num precipício depois que geral percebeu: que charada besta!
O verdadeiro mistério é como a resposta não passou pela cabeça dos trocentos coitados anteriores. Vai ver é certa resistência em perceber que a gente muda ao decorrer da vida. O tempo nos modifica, por dentro e por fora. Disso não há escape. Há quem lute contra, não aceite envelhecer, ou veja qualquer transformação como uma perda, como algo negativo. Cria uma imagem mental fixa de si mesma e jura que vai carregá-la para o túmulo.
Tenho um diário que todos os dias me lança, feito a esfinge, uma pergunta diferente. A graça dele é eu conseguir observar, pelas respostas dos anos anteriores, o que muda e o que permanece. No dia 2 de janeiro, ele me pergunta: As pessoas podem mudar?
Em 2020, respondi: “da mesma forma que as vegetações: tão lentamente que quase impossível notar; e, ainda assim, serão essencialmente as mesmas”. Em 2021, com um certo tom de frustração e raiva depois de um ano de pandemia: “às vezes, nem em momentos críticos”. Já este ano, minha resposta foi diferente: “tudo fica melhor quando elas entendem que podem”. Foi quando percebi que algo mudou aqui dentro.
Virada de ano e muita gente decidindo que vai assumir uma nova personalidade em 2022. Vou ser a misteriosa, vou ser fitness, vou meter o louco. Ou: cansei de ser inteligente, quero ser somente gostosa. Acho muito mais daora quem entende que pode assumir outra persona, outra atitude diante da vida, mudar comportamentos, ainda que falhe no caminho, do que quem crava “sou assim e pronto”.
É triste quando alguém se fecha numa ideia que tem de si mesma, muitas vezes se agarrando ao que a faz sofrer, como se aquilo fosse ela, como se mudar fosse perder. Não tem desesperança maior do que viver em um mundo que pede revoluções urgentes e não se ver como agente de mudança do único território sobre o qual temos algum controle: nós mesmas.
Não que operar mudanças por dentro seja molezinha. É doloroso. Processo demorado. Leva tanto tempo que as mudanças podem ser imperceptíveis. Às vezes, precisamos de ajuda no caminho. Muitas vezes, sentimos que continuamos andando em círculos, de volta sempre aos mesmos problemas. Mas olhe com atenção. Talvez seu movimento não seja em círculos fechados, mas em espiral: parece que você volta ao mesmo lugar, mas segue para fora, em expansão constante, aberta às novas possibilidades do que você pode ser.
O grande enigma da esfinge, tão difícil de ser decifrado, é que não nascemos fixos. Os que não entenderam, foram devorados. O que somos agora, no entardecer da vida podemos deixar de ser. Nenhum estado é definitivo. Você não é cravada em pedra, meu amor. Então deixa de onda.
Na noite em que dormi com febre de Covid, tive um dos meus clássicos sonhos de fim do mundo. Neles, para ver o apocalipse, não olho para cima, mas para o mar. Ele é que avisa do extermínio da humanidade, todas as vezes.
Eu estava na praia, pegando um bronzeado que deixava minha pele magenta, como eu gostava. Combinava com as cores hiper-saturadas de tudo ao redor, da areia esmeralda, das rochas lilases e dos corais vermelhos aparentes sob a água turquesa. Tudo normal, inclusive a fina camada de plástico que cobria o oceano, como nata boiando sobre o leite, ou como se tivessem encapado o mar com papel contact. Sempre havia sido assim, ou pelo menos era há tanto tempo que ninguém se lembrava que o mar teria sido de outro jeito.
Eu resolvia entrar na água plastificada, perto de onde algumas crianças brincavam, pulando sobre as ondas como em um pula-pula inflável e molhado. Notei que algo estava errado quando um pedaço de plástico rasgado se embolou nas minhas pernas. Tirei os óculos de sol e percebi que, no ponto onde as ondas quebravam, a camada plástica estava cheia de rasgos, que pareciam aumentar a cada onda que vinha.
“Está vindo com mais força agora”, alguém disse atrás de mim, e mandou as crianças saírem da água. Como sempre acontece nessas situações, eu resolvo ficar e assistir. Um paredão de água começa a se formar no horizonte e consigo ver o plástico se romper em vários pontos. Antes que venha o impacto, só lembro de pensar: “Tsunami. Vai acabar em tsunami. Pelo menos vai ser rápido, não sei nadar”. E então tudo se apaga.
Você saberia dizer o que isso significa?
“Deixe que o tempo passe e já veremos o que traz.”
— Gabriel García Márquez, em O amor nos tempos do cólera
Latinidades
Gabriel García Márquez era obcecado por histórias de grandes epidemias que paralisavam o mundo e chegou a comprar várias cópias de Um diário do ano da peste para dar de presente aos amigos
Nessa entrevista, ele conta como foi escrever O amor em tempos do cólera e quais histórias e pessoas reais o inspiraram a criar os personagens
O que podemos dizer sobre a grande confusão que é ser latino-americano através de nossa arte
“Se não te deixam lembrar quem tu é, de fato não pode lembrar por que veio”
Nas ondas da internet
Sabe para quê serve o selo azul de verificado no Twitter?
Podcast novo na área e é Tipo Rádio, apresentado pela musa matogrossense Manu Barem
Experimente fugir do algoritmo do Youtube: digite na busca MOV + 4 números aleatórios e assista ao que aparecer. Eu sempre me surpreendo.
Então é janeiro
Os romanos consagravam o primeiro mês de seu calendário a Jano Bifronte, entidade capaz de olhar, simultaneamente, para o passado e para o futuro.
22.1.22.
Guarde essa data: é o tão aguardado retorno do meu podcast Bobagens Imperdíveis!
Estava sentindo muita falta de contar histórias com a voz e vai ser uma alegria poder retomar este espaço, que você pode, desde já, maratonar e acompanhar no app da sua preferência, está disponível na plataforma mais próxima de você!
Agora também está disponível na Orelo, que me paga uns trocados a cada play. Até me sinto artista, veja só! E você também pode se tornar um apoiador do meu trabalho por lá, então dá uma olhada :)
Se você chegou até aqui pelas ondas da internet, saiba que envio essas mensagens na garrafa diretamente no seu email, para você não perdê-las na correnteza. Basta assinar, grátis, aqui:
Cuide-se. A gente se encontra na próxima edição!
Um beijo,
Aline.
Adorei que o sonho combinou com a parte sobre entender e aceitar as mudanças que tomam conta da gente. Me fez pensar na tradicional convenção da água simbolizar emoção, a imagem do mar embalado por plástico como o "tudo sob controle" que gostamos pensar exercer. Mas o plástico está se rompendo, o tsunami está se formando e seu eu onírico resolve lidar com aquilo ficando parada esperando a onda vir, não há nada a fazer, você não sabe nadar e fugir é inútil. Assim como quando as mudanças começam a fazer mar bravo dentro da gente.
Me faz também lembrar dos sonhos onde me entrego a algum fim iminente da vez. A sensação de esperar ele vir, quando me atinge e depois me sentindo desintegrar, como se eu abandonasse a casca e virasse pó. Assustador, mas também enxergo certa beleza. Quando chegar a hora, descubro se é assim mesmo.
Também sonhei com fim do mundo recentemente, mas comigo sempre é um modo diferente. Desta vez foi terremoto. Eu estava dentro de um apartamento num andar alto e comecei a ver da janela que os prédios ao redor estavam se mexendo como se alguma coisa estivesse passando por debaixo deles. As coisas numa prateleira próxima começaram a se mexer e apoiei a mão nela para estabilizá-la. Olhei para o meu marido, que estava sentado numa poltrona lendo e que olhou para mim bem quando senti o chão inclinar. Também vem essa mesma sensação de ah, é assim que acaba.