Acabei de ler pela primeira vez um romance inteiro em alemão e foi um livro escrito por um brasileiro. Toca a vinheta: Brasil-sil-sil. Quando vasculhei a livraria em busca de um título que me motivasse e fosse adequado ao meu nível básico no idioma (mit Karte, bitte), acabei escolhendo um nome bem familiar: Der Alchimist. Mais motivacional que isso? Impossível.
Deslizei na leitura, mesmo passando por várias palavras desconhecidas. Ajudou ser uma história que eu conhecia, embora eu jamais tenha lido o romance no original — apenas uma adaptação em quadrinhos, na época em que eu visitava a biblioteca para estudar para o vestibular, mas acabava passando tempo demais na gibiteca. E veja só no que deu.
Mais uma vez segurei na mão do Paulo Coelho, dessa vez para atravessar um novo idioma. Da mesma forma que Neil Gaiman me levou a ler um livro em inglês pela primeira vez, do mesmo jeito que Julio Cortázar me guiou no primeiro livro que li em espanhol.
Também me ajudou Der Alchimist ser narrado com uma estrutura de fábula — com repetições, cenas simples de entender. As imagens brotavam límpidas, iluminando o significado das palavras que eu não entendia, tornando o alemão transparente. Ganhei vocabulário de deserto, de viajante, de desejos, de misticismo. O primeiro passo para um dia poder interpretar sonhos e ler tarô em alemão; quem sabe assim ganho uns trocadinhos em euros.
Paulo Coelho, tal qual a caipirinha, o café e o samba, é um dos produtos brasileiros mais reconhecidos aqui fora. Tem sido uma experiência nova entrar em uma livraria e o autor brasileiro mais fácil de encontrar ser Paulo Coelho. Ou quando, em conversas com pessoas de diversas nacionalidades, elas me contarem felizinhas que já leram literatura brasileira, que já leram Paulo Coelho — como a moça que me disse que já leu O diário de um mago em turco.
O que acho difícil de expressar nessas conversas é que os elementos de escrita que fizeram os livros dele atravessarem tantas fronteiras é justamente aquilo que o faz ser um autor tão rejeitado no seu país de origem. Porque, no Brasil, alguém dizer que gosta de Paulo Coelho equivale dizer que não entende nada de literatura. É cafona, não pega bem, vão torcer o nariz. Ainda mais transitando em um meio em que você é medido e julgado pelos nomes que é capaz de dropar, melhor riscar Paulo Coelho da sua lista de dropping names da literatura se quiser soar intelectual.
Ser acessível é, ao mesmo tempo, a maior qualidade e o maior defeito da literatura de Paulo Coelho. Defeito para a crítica literária, pelo menos. Porque é o atributo que o torna, no momento, o autor vivo mais traduzido do planeta, embora nunca tenha ganhado sequer um prêmio literário no Brasil.
O velho dilema de ou cultivar leitores ou tentar agradar a crítica, porque os dois não dá. Se tiver que escolher, prefiro ter leitores. Coitado do escritor que escreve para ganhar prêmios, e quem tá dizendo isso não sou eu, mas o Jorge Amado, que disse também "quando um escritor brasileiro tem êxito fora do Brasil, esse êxito repercute sobre todos os escritores brasileiros. Todos nos beneficiamos."
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Há uma passagem em O Alquimista em que o jovem Santiago está tentando ler um livro de alquimia, mas tem muita dificuldade de entender o que quer dizer aquele texto tão hermético (expressão que surge justamente para falar de alquimistas, esse pessoal que escrevia da mesma forma que mantinha seus potes: completamente vedados).
Mas o rapaz consegue mesmo fazer mágica quando usa o conhecimento que sempre esteve acessível ao mais simples dos pastores: os sinais que ele lê do mundo à sua volta, da linguagem do deserto, dos animais, do acaso, do próprio desejo.
O Universo também é um livro, para quem está prestando atenção.
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A beleza de uma história não está numa forma complicada de contá-la. Gosto como o narrador de O Alquimista guia essa história, como se estivesse me contando um conto de fadas muito antigo, que ele sabe que eu já ouvi mil vezes, mas que vai me manter entretida mesmo assim.
Se literatura não for fundamentalmente entretenimento, eu não sei mais o que é.
Qual foi o primeiro livro que você leu em outro idioma?
trilha sonora desta edição
Por falar em alquimistas, fiquei fascinada por este artigo da BBC que conta que Jorge Ben Jor compôs o icônico A Tábua de Esmeralda depois de participar, acompanhado de Gilberto Gil, de uma reunião secreta com alquimistas, nos fundos de um restaurante em Paris.
Não bastasse o nível de aleatoriedade desse rolê, Ben Jor conta que viu um fantasma nesse lugar. O casarão já foi propriedade de Nicolau Flamel, o ricaço vendedor de livros na Idade Média que — dizem — foi um alquimista que conseguiu criar a Pedra Filosofal. A aparição, que seria o próprio Flamel, teria inspirado Jorge Ben Jor a compor a música O namorado da viúva.
O que Jorge Ben Jor fez nesse álbum foi alquimia pura. Misturou samba com a descrição de processos químicos — e meter “coagulação” numa música não é para qualquer um. Falou de deuses astronautas, Zumbi dos Palmares, citações em latim de Santo Agostinho. Misturou negritude, misticismo, astronomia, a história da civilização, um ritmo envolvente. Isso sim é fazer ouro com as próprias mãos.
Como diz um pesquisador da obra de Ben Jor em um trecho desse artigo que indiquei (vale a pena ler inteiro):
"Nosso trabalho é fundamental para mostrar como Jorge não é só um compositor de músicas alegres. Embora não seja muito associado à intelectualidade da MPB, temos o papel de mostrar como ele é fascinante justamente por ir misturando as coisas como se fossem pistas que, no fim, fazem a gente ter a intuição de que há algo maior por trás de tudo."
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A palavra alquimia é mais uma que herdamos do árabe.
A origem da palavra, na verdade, vem dos antigos egípcios, que sabemos eram químicos de primeira. Khēmia era a palavra que eles chamavam sua terra, o Egito, e também o tipo de terra escura que era encontrada no local. Logo, khēmia também significava a cor preta. Egito era, literalmente, a Terra Negra.
Quando os árabes começaram a imitar os egípcios em suas experiências de misturar elementos, eles passaram a chamar aquilo que estavam fazendo de اكيمياء — al-kimya, para chamar de "a ciência do Egito". O mesmo que fazemos até hoje, quando chamamos de "pão francês", "paletas mexicanas" ou "limonada suíça" coisas que não exatamente existem na França, no México ou na Suíça, mas que são invenções brasileiríssimas. Fazer o quê, se um rótulo estrangeiro ajuda a vender mais?
Com a alquimia aconteceu algo parecido: a tal "ciência do Egito" acabou sendo uma invenção árabe; foram eles os que realmente desenvolveram os métodos e o corpo de conhecimento da alquimia, que mais tarde deu origem à química moderna. Abū Mūsā Jābir ibn Ḥayyān, considerado o pai da alquimia árabe, isso no século 8, teria sido o responsável pelo desenvolvimento do processo de destilação.
Não por acaso alambique, do nosso português, é palavra de origem árabe. Agradeça aos alquimistas na próxima vez que você degustar uma caipirinha.
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Alquimia, alambique, álcool, algarismo.
Recife, oxalá, aldeia, açúcar, arroz, fardo, fulano.
Cuscuz!
Falamos português tropeçando no árabe. Herdamos muito de sua cultura e hábitos (tipo tomar um cafezinho), mas quase não pensamos sobre isso.
Talvez tenha algo a ver com os árabes terem ocupado por uns 800 anos a península ibérica, onde hoje fica Portugal e Espanha? Puxa, talvez 8 séculos seja o suficiente para deixar alguma marca no lugar.
Até os portugueses, que os chamavam de "mouros", os expulsarem da região; um tempinho antes de pularem em barcos para conquistar terras indígenas do outro lado do oceano. Já estavam craques nesse negócio de expulsar e ocupar.
Porém algo permaneceu. Em evidências físicas, na estética e nas construções portuguesas (azulejo, também é, veja só, de origem árabe). Na cultura e nas palavras que se assentaram na língua portuguesa, essa que já é também uma invenção bem brasileira.
Não por acaso o livro mais famoso de um brasileiro é sobre atravessar o deserto. Como O Alquimista pode não ser essencialmente, radicalmente brasileiro, mesmo não se passando no Brasil, mesmo com personagens falando árabe, mesmo que traduzido para o turco, mesmo que lido em alemão? O Brasil está lá!
Essa busca pelo ouro, o misticismo, o impulso por misturar tudo o que tocamos, tudo isso está em nós. O brasileiro sim, é um alquimista.
Ruínas e memória
"No âmago desse livro está a questão da transição. Da imprevisibilidade, de como tudo pode acontecer, de como tudo pode mudar, e dessa transição que acontece dentro de nós e no mundo ao nosso redor, mas como os seres humanos persistem."
A Duda Menezes leu Cidades afundam em dias normais e trouxe sua perspectiva da história em um vídeo tão legal, que eu precisava compartilhar com você. É um tipo de mágica encontrar alguém que leu, profundamente LEU, o livro que você escreveu.
Nos capítulos anteriores...
Eu sou uma mística de conveniência das mais safadas.
"O que está embaixo é como o que está no alto
O que está no alto é como o que está embaixo"
— Jorge Ben Jor, em Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda, quiçá minha favorita desse álbum.
Encerro esta edição ouvindo A Tábua de Esmeralda e brisando no fato de que a transição pertence aos domínios da alquimia. A transição é mesmo o território que mais me interessa.
Lembre-se: beba água, pratique exercícios e responda aos meus emails sempre que quiser.
Um beijo,
Adorei esse texto, Aline! Se literatura não for essencialmente entretenimento, eu também não sei o que é. Eu li uns três ou quatro livros de Paulo Coelho quando era adolescente e confesso que foram essas leituras (ao lado de Marion Zimmer Bradley, Umberto Ecco e Mika Waltari) que me fizeram ser uma leitora ávida e, hoje, querer ser uma escritora de ficção. Seu texto me deu até vontade de ler esses livros novamente, para ver o que a Patricia de 47 e a Patricia de 14 ainda têm em comum.
Sem falar que você trouxe fatos sobre Jorge Ben Jor, um dos meus artistas brasileiros favoritos, que eu absolutamente ignorava! Obrigada pela excelente surpresa nessa manhã de sábado.
Esse álbum do Jorge Ben Jor é um dos meus álbuns favoritos! depois de escutá-lo, fui pesquisar mais sobre os tratados herméticos e acabei caindo num mundo fascinante do Caibalion.
Quanto ao Paulo Coelho, é muito triste que realmente aconteça esse fenômeno de "se faz sucesso lá fora, não é considerado bom para a crítica literária br". Eu cresci lendo Paulo Coelho. Lembro que na minha adolescencia eu fazia maratona, devo ter lido uns dez livros dele ou mais. Porém, depois fui parando ao ver que as pessoas "entendidas" de literatura o detestavam. Estou num processo de retomar a leitura dele, talvez começar com os livros que eu mais gostava, como Veronica decide morrer ou às margens do rio Piedra eu sentei e chorei.
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