Querido Neil,
Mais de 20 anos se passaram desde os primeiros presentes que você me deu. Sim, eu os trouxe na bagagem até aqui, todo esse caminho, acredita? Tá louco que eu os deixaria para trás. Até porque alguns deles eu engoli. Eu tinha muita fome na época, espero que entenda.
Lembra? Foi quando te pedi emprestado alguns dos seus personagens. A Morte, minha favorita, cheguei a usar para escrever meu primeiro conto. Eu estava aprendendo, era mais fácil navegar com uma personagem que eu já conhecia tão bem. O irmão mais novo dela eu preferia usar para contar histórias com desenhos. Achava estiloso aquele cabelo, a capa rasgada. Depois vieram os outros: a família completa, o cabeça de abóbora, Caim e Abel, o corvo, o menino com a coruja-ioiô. Grande elenco nas minhas primeiras aventuras como aprendiz na escrita.
Isso foi no tempo em que eu ficava na Kingdom Comics namorando seus quadrinhos que eu não podia comprar. Quando minha maior ambição era ganhar dinheiro para comprar os livros e HQ’s que eu quisesse ler. Eu não fazia ideia do quão longe eu poderia ir, de que eu pude, de fato, querer e fazer muito mais do que encher minha prateleira de livros. Mas você, de alguma forma, fazia ideia. Você já me levava pela mãozinha para passear em outros mundos, mesmo quando eu não encontrava muitas perspectivas na minha realidade.
De repente um inglês de cabelo bagunçado e jaqueta preta me dizendo que existia um reino dos sonhos, que para além dos muros existia uma passagem para o reino das fadas, que até a Morte vinha passar pela experiência humana de vez em quando. Foi mais do que me fazer companhia. Foi me empurrar para frente.
Engoli de você tudo o que eu consegui, feito a Colombina comendo o coração cru do Arlequim, com garfo, faca e catchup. “Eu quero fazer o que esse cara faz!!” No processo de te imitar, acabei encontrando um caminho próprio. Mas acho que as pessoas que nos inspiram continuam fazendo parte de nós. Misturam-se à nossa carne, aos nossos pensamentos. Às vezes aparecem costuradas naquilo que a gente faz.
Admiro muito como você faz isso. Não a cópia pela cópia, a referência pela referência. Toda vez que você tirou de algum lugar um tijolinho para usar nas suas histórias, você teve o cuidado de acrescentar algo seu. Sim, fazer magia tem um preço. Você sabe apresentar personagens que já existem, de mitologias antigas ou modernas, mostrando como eles podem ser reinventados, como as histórias nunca estão completamente esgotadas, como elas continuas nos convidando para criar.
Você, eu, os autores da Bíblia, dos Ciclos Arturianos, das tragédias gregas, da Commedia Dell’arte, dos gibis de super-heróis, todos parte de uma cadeia ininterrupta de criação coletiva, todos fazendo seus corpos e vozes de ponte para que os personagens, esse sim, perpétuos, possam nos atravessar para alcançar mais pessoas, para chegar às gerações seguintes.
Contamos histórias para empurrar outros para frente. Os que vieram antes, os que podem vir depois. A criação precisa dessa generosidade para continuar viva.
Desde que conheci a Morte como uma garota gente fina com um Ankh pendurado no pescoço, ficamos amigas. Conversamos bastante. Então entendi que ela existe não para que as coisas cheguem ao fim, mas para que possam se transformar.
Porque quando engolimos pedacinhos das coisas que amamos, dentro de nós elas se transformam. E então a gente muda junto. E fazemos coisas que outras pessoas vão engolir e transformar, e assim sucessivamente, até as últimas linhas escritas no livro de Destino ganharem um ponto final e a Morte vir para apagar a luz. Até lá, continuamos a transformar as histórias com os nossos pedacinhos.
Então essa nossa conversa, meu amigo, não vai terminar tão cedo.
100
Esta é a minha segunda newsletter que alcança a centésima edição. Primeiro penso: que bobagem, um número. O que dizem além de um texto depois de outro texto, mais um dia escrevendo, e depois mais outro, o tempo que passa, como sempre? Normal.
Então penso: o que pode ser mais importante do que mais um dia escrevendo, um texto após o outro, o tempo que passa, mais um dia normal? A vida é o que a gente veio fazer aqui.
Cem edições, então, não me parece pouca coisa. Nada melhor para mostrar o que estou fazendo da minha vida do que aquilo que repito algumas centenas de vezes.
Amizade de longa data
“[Neil] veio me ver quando estava escrevendo Stardust, e ele leu para mim o primeiro capítulo na praia. O vento soprava e ele segurava minha mão. Era um tempo em que pouquíssimas palavras podiam trazer conforto.
Acho que quando você está numa encruzilhada há alguns amigos que somem, e tudo bem, porque não é o forte deles. Neil é diferente. Ele nunca se assustou sobre estar numa encruzilhada.”
— Tori Amos, sobre Neil Gaiman
Imagine o tamanho do privilégio de ter esse amigo ao seu lado, segurando sua mão, o vento batendo salgado no rosto, enquanto ele lê um trecho de uma nova história no qual está trabalhando.
Um pouco mais sobre essa amizade entre artistas no texto Como se fosse Neil Gaiman segurando a mão de Tori Amos.
“Se você precisar de mim, eu e Neil estaremos de mãos dadas com o Rei dos Sonhos”. Edição escrita ao som de Tori Amos, claro:
Magia é a possibilidade de criar
Episódio em que converso com a Glênis, do podcast Méxi-Ap, sobre Os Livros da Magia e o que faz essa história ser uma das minhas favoritas do Gaiman:
Continua…
O campo das ideias, das histórias e da expansão de mundos internos exige trabalho constante! E eu continuarei por aqui, escrevendo, publicando meus textos de forma aberta e gratuita, no blog, na newsletter e no podcast. Quero continuar a fazer a palavra circular de forma mais livre possível — e meus apoiadores têm um grande papel nessa história.
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Bons sonhos e até a próxima!
Com amor,
O Neil Gaiman precisa ler essa carta ahah
"Contamos histórias para empurrar outros para frente. Os que vieram antes, os que podem vir depois. A criação precisa dessa generosidade para continuar viva." GENIAL <3