Novembro foi um túnel longo e escuro, em que me meti em uma maratona de escrita, sem a menor ambição de bater as 50 mil palavras propostas pelo desafio. Vamos combinar que NaNoWriMo é coisa de gente maluca. Já estava de bom tamanho avançar no projeto que tenho em andamento, mover a história adiante sem querer colocar fogo em cada página que eu conseguisse escrever, como estava sendo minha relação com a história até então. O objetivo é colocar palavras no papel, ninguém falou que elas precisam ser ótimas. Escrevo todas as palavras que conheço. Risada. Avestruz. Lantejoulas. Rachaduras. Pedriscos. Chacota. Começo a catar feijões, escolhendo com cuidado. Quase nunca bato a meta do dia, ainda assim, dobro a meta. Durmo pensando nos personagens, acordo pensando nos personagens. Há dias em que acordo no meio da noite e fico olhando para o teto, resolvendo problemas de xadrez, imaginando o que acontece se eu mover esta ou aquela peça de lugar. Amanhã desfaço tudo. Eu gosto bastante quando a realidade desmantela os planos todos. Já pensou o que teria acontecido se o plano de Bolsonaro e dos milicos tivesse dado certo? Não tem como levar nada a sério no Brasil, se até conspirações para assassinar um presidente e derrubar a democracia envolvem figurinhas no zap com a cabeça de um ministro em forma de piroca. Só tem um jeito de seguir em frente e é encontrando uma forma de me divertir com o processo. Acho que foi Camus quem escreveu que é preciso imaginar um Sísifo feliz, satisfeito em rolar aquela maldita pedra morro acima, mesmo sabendo que vai precisar começar tudo de novo no dia seguinte. De fato, flui melhor quando deixo os personagens me fazerem rir com a loucura de cada um. E daí que está uma palhaçada? Palhaça sou eu por insistir em ficção em um país onde o gênero literário mais lido não é romance nem contos, mas a Bíblia. Será que leem mesmo? Duvido. A Bíblia é um bom exemplo de que nenhum fenômeno literário acontece sem uma boa parcela de haters. Não tenha medo de escrever uma porcaria! De repente, é um bom negócio. Esses dias, vi muita gente metendo o pau em um podcast com roteiro mal-feito, entrevista capenga. Não ouvi, nem ouvirei, mas penso em quanta gente foi lá dar o play só para confirmar que é ruim mesmo. O ranço move montanhas. Bom deixar claro que acho justo a Bíblia ser um sucesso literário, tem mesmo umas histórias ótimas. Cato algumas de referência. Parece que a própria história te confidencia qual a forma ela quer ter, mas isso só se descobre avançando na escuridão da caverna, enxergando apenas o que a fraca luz da lanterna do seu capacete consegue iluminar. Melhor nem olhar para trás. Há exatamente 10 anos eu estava fazendo a mesma coisa, e é o Marcos que precisa me lembrar que eu estava chorando e reclamando do mesmo jeitinho, achando que não ia conseguir terminar, que nada fazia sentido. O problema é que daquela vez escrevi como um demônio, em parte porque precisava de um pretexto para me trancar no quarto por um mês inteiro. Competir comigo não é moleza. Me vejo ficando para trás, embora eu sequer esteja correndo na mesma pista que a minha versão mais jovem. Cada história é um jogo completamente diferente, com suas próprias regras. E nessa eu tenho muito mais personagens para renderizar. Saio do outro lado do túnel com 33 mil palavras, faltando apenas 5 capítulos para o final da história. Ganho o desafio? Não. Ganho uma imensa intimidade com os personagens e uma visão sobre a história que eu não tinha antes. Ganho uma história para terminar. É alienígena essa sensação de ficar satisfeita com algo que faço. "O prêmio é o trabalho", como mui sabiamente já me disse a Fal. Dá para ficar felizinha com o que não está fechadinho, com o que ainda falta, porque é pelos buracos por onde podemos entrar na obra. Saboreio o momento de satisfação enquanto posso. Monto uma pratola de macarrão com feijão para comemorar. Putz, vou ter que lembrar como é falar com pessoas reais de novo.
Aline Valek é uma obra de ficção mantida pelos leitores.
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Volto na próxima edição com o último Bobagens Imperdíveis do ano! Enquanto isso, fique com o episódio mais recente, em que falo justamente sobre a importância de continuar:
Continua. Sempre.
Um beijo,
Esse processo de criatividade é maravilhoso. Dialogar com personagens, imaginar cenários, escolher palavras (como catar feijões, né? rsrsrs). E a forma como você encarou todo o processo mostra maturidade e consciência. E aqui estamos nós para conhecer um pouco mais do seu processo criativo. Obrigado!
Amei a falta de paragrafo no texto pra expressar a mentalidade da pessoa pós um NaNoWriMo. Mandei até um "orrax" mental no final da leitura. 😘