Coração partido. Raiva. Nojo. Decepção. Negação. Náuseas. Vergonha. Dúvidas. Revolta. Tristeza. Quantas palavras cabem entre as fases do luto? Quando vieram as primeiras denúncias contra o Neil Gaiman, senti que um antigo professor estava sendo acusado de abuso. Fiquei triste porque tinha (tenho?) uma relação com a obra dele. Aprendi tanto com os personagens que ele criou, busquei inspiração em suas histórias tantas vezes, está nas minhas memórias de juventude, está em vários textos do meu blog. O que faço com isso agora? Não falo mais sobre. Não compro outros livros, não dou audiência para suas séries. Apago o que já escrevi sobre ele. Finjo que morreu. Está acabado.
Mas a história não está. Porque leio a reportagem que detalha os casos de abuso e é tudo muito mais escabroso do que eu imaginava. Saiu na New York Magazine (sem paywall aqui), mas aviso que é preciso ter estômago para ler. Envolve o abuso de várias mulheres, consecutivas vezes, algumas delas com o filho dele de 5 anos no mesmo ambiente. Terminei a leitura atordoada. Quando não sei o que fazer, escrevo. Transformar em palavras ajuda a processar a dor, a desembaçar a vista. Além disso, abusadores se alimentam de silêncio.
Não que Neil Gaiman tenha se tornado um abusador de mulheres com a idade, a fama, a fortuna acumulada. Provavelmente, quando comecei a ler seus quadrinhos, mais de vinte anos atrás, ele já era um estuprador. Quando ficamos empolgados em reviver a obra dele em uma série da Netflix, três anos atrás, ele continuava a ser um estuprador. O chocante é ele ter escondido isso de tanta gente, por tanto tempo. A ponto de pessoas próximas, como a cantora Tori Amos, sua antiga amiga e comadre, sequer desconfiarem.
Fico pensando se é só questão de tempo até o próximo homem-cujo-trabalho-admiramos se revelar um completo bosta abusivo. Quantos homens que conheço, admiro, considero amigos, aliados, gente fina, já não abusaram de mulheres (ou continuam abusando), dispondo delas como objetos e depois as manipulando para acreditarem que são loucas, que não houve nada, que foi tudo algo da cabeça delas? Este roteiro é antigo. Ainda assim, segue se repetindo, demasiadas vezes.
"Antes de você julgar Neil Gaiman, lembre-se de toda a sensibilidade e humanidade em sua obra, a alegria que ela trouxe. Então o julgue ainda mais severamente, porque você sabe que ele sabia como ser uma pessoa decente e escolheu fazer o contrário." Daqui.
Ele passa meses em silêncio, o que interpreto como confissão de culpa. Declara, em notas aparentemente redigidas por advogados, que todas as relações foram consensuais. Mas por que ele precisaria fazer as mulheres assinarem contratos de confidencialidade e pagar uma grana para ficarem caladas se foram mesmo relações consensuais? Normal, tudo normal. A começar por ignorar a relação de poder que existe entre um homem mais velho, mais rico, mais influente tendo relações sexuais com a babá do próprio filho, uma mulher mais jovem, em situação de vulnerabilidade, sem dinheiro e sem casa para morar.
Quem dera a questão se resumisse a separar autor da obra. Sim, pessoas que cometem atrocidades são capazes de criar coisas bonitas. Não, eu não consigo olhar para as HQs que guardo na minha estante com os mesmos olhos. Neil Gaiman as envenenou para mim. Em um texto que escrevi nesta newsletter (que não irei apagar, mas tampouco quero linkar), falo sobre como a obra dele me ensinou que a morte não existe para que as coisas cheguem ao fim, mas para que elas possam se transformar. As histórias que ele escreveu não irão desaparecer, mas se modificaram. Agora permanecem como um registro de algo que foi e deixou de ser, um lembrete para nunca, jamais, confiar no narrador, porque ele pode ser um lobo morando dentro da parede, mais perto do que gostaríamos.
A perda que quero lamentar aqui é de uma ordem maior do que um punhado de quadrinhos na minha prateleira. Ou a de um autor querido que formou gerações. Que se foda o Neil Gaiman. O que não falta no mundo são outras histórias fantásticas com as quais posso me relacionar. Algo muito maior se perdeu com a revelação dos abusos de um artista admirado por muitos, pretenso feminista e defensor de minorias. Quando uma mulher é violentada, o que se rompe é um pacto civilizatório.
Como podemos construir qualquer modelo de sociedade quando homens se sentem muito à vontade para praticar violência — física, sexual, psicológica — sabendo que podem se amparar em um sistema que os protege, que podem contar com a omissão e com o silêncio dos amigos, que podem contar com o medo que as vítimas sentirão de denunciar? Como podemos continuar a viver em um mundo onde esses homens não se sintam absolutamente aterrorizados com o que pode lhes acontecer se violentarem uma mulher? Como eles podem continuar livres, vivendo entre nós, trabalhando conosco, publicando livros, ganhando dinheiro, respeito, admiração?
Não foram apenas páginas de quadrinhos que perderam o encanto para mim. A humanidade também perde o encanto quando lembro que é só mais um caso entre tantos, que isso vai continuar acontecendo, que acabar com a vida de uma mulher sempre sai muito, muito barato.
Eis o luto coletivo que temos para processar.
ele foi uma das minhas maiores influências, quando saiu o podcast já senti o peso da decepção, com essa matéria nova só consigo sentir nojo e raiva. essa banalidade, de ser mais um homem abusador em um mundo de homens abusadores, talvez seja a parte mais deprimente. parece que todo dia temos que viver esse luto, que as coisas não mudam.
mas não podemos desistir, né, vamos atrás de novas referências, vamos continuar lutando.
Eu estava pensando nisso hoje, em como as obras dele, sua influência, seu percurso, toda sua trajetória, tá tudo manchado pra mim. E pra sempre. Acredito que nunca mais vou conseguir fruir um trabalho de Gaiman. É mesmo uma questão de luto. Na sexta passada, uma pessoa me disse que os atos de Gaiman se tornam ainda piores pela posição icônica que ele ocupava em mentes e corações de tantas pessoas. É algo assustador, além de ser extremamente revoltante.