Antes, uma palavra sobre pessoas que não saem da nossa cabeça.
Desde que a Baronesa cruzou o meu caminho, não consegui desviar o olhar ou o pensamento. Tentei escrever sobre outros assuntos, dizer “agora não”, mas ela voltava. Fico facilmente obcecada por gente que já morreu há muito tempo, mas havia algo de magnético na história dela. Algo muito além dos rumores de que a obra que consagrou Marcel Duchamp, na verdade, teria sido ideia dela.
A Baronesa Elsa Von Freytag-Loringhoven foi uma artista alemã que viveu na virada do século 19 para o 20. Ela foi poeta, artista visual, atriz, performer, modelo. Artistas multitalentosos sempre me encantam ao mostrar que o fazer artístico frequentemente transborda das caixinhas que alguns teimam em separar.
De Baronesa só tinha o título, que herdou do terceiro marido. Elsa veio de origem pobre e não teve uma vida luxuosa para os padrões burgueses, embora possa ser considerado um luxo viver para a sua arte. No meio disso, ganhou a vida como modelo vivo para outros artistas, trabalhou numa fábrica de cigarros quando foi viver nos Estados Unidos, virou moradora de rua quando voltou para a Europa, vendeu jornais. Sua nobreza estava em outro lugar.
Era no entulho que a Baronesa encontrava suas obras. Seu olhar transformava uma peça de encanamento em deus. Um pedaço de madeira em catedral. Latinhas amassadas em sutiãs, restos de metais nas suas joias e ornamentos. Ela entendia profundamente que bastava mudar algo de lugar para, feito mágica, forjar um novo significado. Como em seu poema “Cosmic Arithmetic”:
COSMIC ARITHMETIC
1 = 2 = SEX
2 = 1 = POTENCY
1 = 3 = HOLY GHOST
— E.V.F.L
Mesmo para os padrões de hoje, Elsa seria um escândalo. Não se adequava aos padrões de gênero nem se conformava ao que se esperava da arte. Queer. Excêntrica. Anticapitalista. Punk. Rótulos não faltam, mas duvido que ela os buscasse. Apenas era.
O que hoje entendemos como Dadaísmo, para a Baronesa era apenas viver. Ela é considerada uma das precursoras do movimento dadaísta, mas dificilmente ela teria sido essa força criativa se estivesse preocupada em inaugurar o que quer que seja. Definir padrões e formatos definitivamente não era a pira dela.
Duchamp dizia que ela era o futuro. De onde escrevo, quase um século depois, posso dizer que ela continua sendo. Os anos 20 do século 21 começaram bem conservadores e moralistas. Uma pobreza de imaginação. Inventar para quê, se podemos copiar? Partir do que já está feito, pensado, do que está dando certo? Inventar é muito arriscado. Corre o risco de não agradar.
Trocamos imaginação por eficiência. Eficiência para engajar mais, para provar, com números, que você é boa no que faz, que chegou lá primeiro que os outros. Eficiência para entender um padrão, entrar nele e produzir algo que seja reconhecível como um exemplar bem-sucedido de seu gênero. E de que diversidade de padrões dispomos hoje! Só escolher o seu e tentar se encaixar. Pertencer, no fundo, acaba sendo o maior dos desejos. Muitas vezes, acaba sendo maior do que o desejo de criar.
Penso no medo de mostrar quem sou. Em todas as vezes que me segurei para parecer adequada. Porque o que eu tinha para oferecer era destoante do que estava sendo celebrado como bom. Medo de parecer ridícula quando esquisito mesmo é se limitar e se podar para se adequar.
Não tenho a quem culpar mais além de mim mesma por todas as barreiras que me coloquei. Toda essa energia gasta em criar impedimentos, enquanto eu podia usá-la para simplesmente criar. Soltar o braço. Falar sobre o que realmente me interessa, independente do que as vozes lá fora definiram como relevante. E então atropelar tantos outros temas que eu tinha planejado e sentar numa tarde calorenta de sexta para escrever sobre uma alemã doidona pela qual fiquei obcecada.
A Baronesa insiste em me dizer algo, dançando em silêncio com seus movimentos esquisitos, equilibrando-se em um pé só. O que você está tentando dizer? Ela ri da minha cara e diz: “Só faz a sua parada”. Então ela chacoalha suas pulseiras e colares de bugigangas, pisca para mim e dá um giro antes de desaparecer no ar, borrando os limites da realidade, como sempre soube fazer muito bem.
“Acho terrivelmente perigoso para um artista atender às expectativas de outras pessoas. Geralmente produzem seus piores trabalhos quando fazem isso.
Sempre vá um pouco mais adiante na água do que você sente que é capaz de ir. Quando você sente que não consegue tocar o fundo com os pés, você está justamente no lugar certo para fazer algo empolgante.”
— David Bowie
👑 Se gritar “pega narcisista!”, não fica um, minha filha
“O adorno do artefato não é uma superficialidade; as pessoas não precisam apenas de pão. A decoração atribui sentido ao banal e constrói significado na rotina.”
— De uma belíssima newsletter da Ariela sobre a importância do que enfeita a nossa vida
✨ A beleza do Universo captada pelo telescópio James Webb resultou em imagens de tirar o fôlego, que Hank Green esmiuçou aqui
📖 Para quem quer aprender sobre mercado editorial, se liga no curso Vida do Livro, do fera Daniel Lameira, que tá com inscrições abertas
⚔️ Das coisas que só o MF me manda: um álbum de hip hop medieval que embalou a escrita desta edição
“Rap de verdade. Literatura de verdade. Tem sempre alguém reivindicando o posto de gatekeeper. As fronteiras existem, em primeiro lugar, para eleger quem são os forasteiros.”
— Lá no blog, sobre por que não me agrada cumprir as expectativas dos rótulos
🗝 Um conto de Kafka brilhantemente reimaginado por Elvira Vigna, não vou nem escolher trecho aqui, tem que ler inteiro e ó, vale a pena
🐔 Eu já tinha achado Inside genial, aí Bo Burnham volta com mais para me mostrar que sempre dá para ser mais doido
Fanservice
Se você gostou da edição anterior sobre Paper Boi, fique também com este episódio do meu podcast sobre o dia em que nosso amigo se perdeu na floresta e o que isso tem a ver com a Bíblia, Chaves e Onde Vivem os Monstros:
Dois exercícios para desbloquear a escrita
Eu realmente fiz esses exercícios ao vivaço na frente da câmera para demonstrar algumas das práticas que uso como ponto de partida para ter ideias para textos ou personagens. Você pode tentar aí da sua casa!
Um aperitivo do meu curso de escrita na Domestika, que você pode começar quando quiser e fazer no seu tempo. Vamos escrever juntos?
Ah, estou amando ler as newsletters que os alunos produziram para o projeto final. Como sou LOUCA e propus como projeto final não apenas um texto ou uma edição de uma newsletter, mas uma SÉRIE de textos (afinal, o curso é sobre manter uma continuidade na escrita), posso demorar um pouco para comentar o seu projeto, mas eu chego lá! Não desistam de mim.
Esse texto chegou até você pelas ondas caóticas da internet? Receber Uma Palavra no seu email é mais gostoso e você não paga nada.
Obrigada pela leitura! Espero que a edição de hoje te leve a novas fronteiras. Fico muito feliz quando algo que escrevo gera novas conversas entre pontos até então distantes na cabeça de alguém.
Ainda que isso não aconteça, seguirei fazendo a minha parada.
Um beijo,
Ah, eu não conhecia e fiquei alucinada lê-la Baronesa. Obrigada por essa edição maravilhosa
Eu tive uma fase de obsessão pela Baronesa. Que belo resgate de memória! E essa foto dela abrindo a newsletter?? ❤️❤️❤️