Às vezes quero contar o que se passa na minha cabeça, às vezes quero só mostrar o que tenho visto de interessante por aí. A edição que tenho para te oferecer hoje é deste segundo tipo. Aceita?
Outro dia, no grupo dos Valekers, alguém pediu indicação de newsletters do tipo slice of life. Textos que falam sobre o cotidiano, sobre a vida real. Não sou muito boa em distinguir gêneros. Enxergo borrado, mesmo de óculos. Vejo que mesmo os textos de ficção mais loucos estão carregados de elementos da vida de quem escreve. Por outro lado, mesmo textos ou histórias sobre a vida "real" estão cheios de invenção. No fundo, toda história, inventada ou não, tem uma fatiazinha de vida.
Mas sei o que querem dizer quando falam de slice of life. A
é o primeiro exemplo que me vêm à mente. Essa mulher escrevendo sobre o barulho da chuva, sobre aquários, sobre amigos que não dão a mínima, sobre fazer tortinhas de aveia e assistir a filmes antigos, consegue sempre me arrepiar. Ler seus diarinhos, quase como se eu estivesse xeretando cadernos dos outros às escondidas, já virou uma fatia da minha vida.Eu gosto muito desse estilo de escrita que dá peso às coisas mais cotidianas. Tipo a
escrevendo sobre copos de cerveja. "Todas as vezes que eu escrevo, eu minto." Ela diz, mas não acredito. A forma que ela descreve a saliva na borda do copo, sonhando intimidades de um beijo, parece feita da substância sólida que só o real tem.Preciso confessar que às vezes começo uma newsletter mirando em escrever algo no estilo diarinho. Sinto que falho miseravelmente. Preciso de um enorme esforço para dar concretude às coisas tiradas do meu cotidiano, da minha vidinha silenciosa. Talvez porque eu tenha uma realidade gasosa. Às vezes, sinto que sou apenas um fantasma vivendo em outro fuso horário.
A
, outra ótima referência nesse estilo de escrita, fala exatamente desse vivido narrado em um de seus textos:"Foram muitas as vezes, no entanto, em que me senti intimidada e diminuída com o fato de que eu estava interessada em construir narrativas que partiam de alguma coisa da minha experiência. Eu me perguntava se fazia algum sentido o que eu escrevia, porque parecia ser pequeno e mesquinho querer falar em alguns momentos de mim mesma."
É curioso existir essa insegurança (também da minha parte), embora eu me interesse horrores quando alguém escreve sobre a própria vida. Quem também faz isso muito bem é o
, em uma edição que desabafa sobre sua teimosia para escrever, entre jogos de tabuleiro e bolos de chocolate:"Entre ligar o computador ou jogar Jenga no tapete da sala com meu filho de cinco anos às 3 da tarde de uma segunda-feira, a concorrência era desleal."
Gosto demais de como a
conta de suas disputas de braço de ferro com a cidade. Ou de como a escreve com o corpo inteiro. Ou de como a , no meio de um nevoeiro, dá solidez a um valete de paus que encontrou na rua e jamais jogou fora.Esse tipo de texto me atrai como a experiência de tomar um chá na caneca favorita de outra pessoa. É um sentimento de intimidade, que muitas vezes consegue ser mais real e mais próxima do que a relação com alguns amigos.
Ler diarinhos (acho que gosto mais desse termo do que slice of life) me faz sentir que alguém teve tempo para parar e compartilhar comigo detalhes sobre seu cotidiano, algo cada vez mais raro de encontrar, em parte porque tendemos a achar que os detalhes do nosso cotidiano são besteirinhas que não valem o tempo de outra pessoa e, céus, como ninguém tem tempo para mais nada! Mas valem muito, valem demais.
Me agarro a essas fatias de vida tão preciosas porque sinto que, ao final, elas expandem um pouco mais a minha. Usando as palavras do Rodrigo:
"Todo mundo tem várias vidas, algumas delas ao mesmo tempo, algumas separadas por geografias, outras por URLs."
Fuga para as montanhas
Gosto demais de filmes com bastante conversa. Não precisa ter efeito especial, plot mirabolante, bomba explodindo, nada disso. Um bom filme de pessoas conversando e vivendo suas vidas já tem minha atenção. Parece até que eu gosto de seres humanos, sabe.
Um filme nessa linha que assisti recentemente foi As Oito Montanhas (no original, em italiano, "Le Otto Montagne"). Um filme bonito de ver, não só pelo cenário deslumbrante, as montanhas dos Alpes, mas principalmente porque trata de uma amizade gostosa de assistir.
A história da relação entre Bruno e Pietro atravessa décadas, passa por encontros e desencontros, ciúmes, distâncias e uma ternura muito profunda, que amadurece junto com os personagens. O filme constrói toda uma tensão entre os dois que me deixou vidrada até o final, mas melhor não te contar mais detalhes além de: italiano é mesmo muito intenso.
Outro motivo para eu ter gostado tanto deste filme é que aqui em casa um dos nossos programas favoritos na TV é assistir ao canal do holandês Martijn Doolard, que chamamos carinhosamente de Martinho dos Alpes.
Assim como os personagens de As Oito Montanhas, Martinho está reformando uma cabana de pedra no meio das montanhas. Se pá, até na mesma região mostrada no filme, perto de Turim, cidade onde Pietro cresceu. Já é o segundo ano que Martijn está trabalhando nessa obra, que às vezes conta com ajuda de voluntários, mas que ele faz a maior parte do tempo sozinho, dedicando muito capricho a cada detalhe.
Nada mais slice of life do que assistir a um cara martelando, serrando, carregando pedra, construindo telhado, mexendo em cimento, fazendo pão, colhendo ovos no galinheiro no meio de uma nevasca. Os vídeos são longos, bem contemplativos. Martinho fala pouco e não há cenas aceleradas. Apenas o observamos enquanto ele trabalha calado, com a estonteante paisagem das montanhas como pano de fundo.
Um cara trabalhando sozinho e ainda assim ficamos hipnotizados. Envolvidos. Putz, a barraca dele foi levada pelo vento! Será que ele já terminou o piso? Parece que ele está preocupado com os lobos rondando a região. Ah não, será que as galinhas sobreviveram à nevasca? Ficou daora esse forno, hein.
Cada louco com seu Big Brother.
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"Desenhar tem muito mais a ver com me perder."
— Lourenço Mutarelli
Poder ver o processo dos outros me fascina. Fico absorvida, hipnotizada. Sobretudo quando se trata do processo de artistas que admiro. Comecei a fazer o curso do Lourenço Mutarelli na Seiva, Processos, e me vi em situação de cabeça explodindo algumas vezes apenas assistindo o cara fazer um desenho de observação de 01 unidade de pipoca.
O curso aborda técnicas diversas de produção artística: desenho a lápis, nanquim, aquarela, acrílica, colagem. As aulas são bem práticas e, ao mesmo tempo, bastante contemplativas. Ele mostra todo o processo, com os erros, experimentações, com a trilha sonora que ele realmente usa para desenhar, apresenta os materiais, vai contando histórias, mostra como fez alguns de seus trabalhos, enfim, literalmente nos deixa entrar em seu estúdio e ensina com muita calma e generosidade. Saio das aulas cheia de ideias que já estou aplicando nos meus processos.
Sério, é uma delícia. E, para a riqueza desse material (são DEZ horas de aula com um dos maiores quadrinistas brasileiros), o preço está bem em conta. Vem soltar seu braço.
Cartas de amor
Alguém me contou – e eu não corri atrás da confirmação, como faço com tudo em que desejo acreditar – que é possível mandar uma carta de amor para a Mona Lisa. O museu criou uma caixa postal só dela e você pode mandar poemas ruins, declarações malucas e cometer comparações estranhas do tipo dizer que os olhos dela são como com lagos profundos e misteriosos.
(...)
Tem quem se ofenda com declarações de amor, eu sei, mas a Mona Lisa parece ser mais gentil do que essa gente. Escreva uma carta de amor.
— Fal Azevedo, "Escreva uma carta de amor"
Sim, Fal, é verdade. Você pode mandar cartas de amor para a Mona Lisa. E você nunca vai saber se ela leu ou não, porque ela não vai responder. Mas pelo menos você leva um ghosting da Mona Lisa, e não de um zé mané qualquer.
Musée du Louvre
Service des publics
A l'attention de Mona Lisa
75058 Paris Cedex 01
France
Nesta edição indiquei algumas newsletters que gosto de acompanhar, mas um bom ponto de partida para desbravar outras é a listona de newsletters brasileiras do Manual de Usuário, que foi atualizada recentemente para garantir que estejam listadas apenas aquelas que estão em atividade e são abertas.
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Eu não sou a Mona Lisa, mas você pode me escrever sempre que quiser.
Um beijo com cobertura de glacê,
que edição gostosa de ler 🩷
sabe que eu acho que há uma pequena diferença entre o slice of life e o diarinho? acho que o primeiro foca no objeto, na vida fora da gente, e o segundo é totalmente autocentrado, mas eles sempre se mesclam. É claro que essa diferenciação não guarda nenhum compromisso com a formalidade, porque na definição concreta o slice of life é um gênero da literatura e do cinema, enquanto o diarinho é uma definição informal que a gente usa em português para definir esses textos pessoais.
me identifico com você sobre essa história de se sentir próxima lendo esses textos. realmente, é meu BBB particular.
e tuas indicações estão tudo! aliás, obrigada por me incluir nessa, que honra. eu mal sabia que eu escrevia com o corpo, gostei muito de ler isso.
abraço 🫀
ô querida. <3