O livre-arbítrio não existe. A teoria vir de um neurologista que é a cara do Inri Cristo não me ajuda em nada a levá-la a sério. Mas a forma que suas ideias aparecem combinadas na tela me convencem.
Meus pensamentos e ações, os impulsos que me levam a reagir a uma mensagem e não a outra, minhas escolhas profissionais, o que me leva a não gostar de comer fruta, a amar quem amo, a falar na newsletter sobre isso e não aquilo, tudo é resultado de uma soma de fatores biológicos ou estímulos do ambiente que estão fora do meu controle.
Sim, eu posso fazer escolhas, inclusive as equivocadas, mas de onde elas vêm? Será que eu poderia ter escolhido diferente? Por que raios desejo o que desejo?
“Nossa intenção ao fazer algo parece tão poderosa que não podemos imaginar não tomar aquela decisão se não quisermos”. Leio as palavras do cientista e volto a examinar aquela minha velha conhecida vontade de desistir. Não seria uma forma de tentar ter algum controle sobre essa força estranha que me leva sempre para a mesma direção?
Se eu disser que acabou, estará acabado! Ah, se fosse fácil assim. Em vez disso, continuo. Me sentindo uma palhaça, mas continuo. Desejo não acaba quando você diz que acabou. É como um outro bicho, vivendo nas suas entranhas, pilotando seu corpo como se você não passasse de um Megazord ansioso e cansado. Vai ver foi indignação o que me levou a clicar justamente nessa matéria, entre tantas outras que passam por mim na correnteza do algoritmo. Como assim não sou eu que mando aqui?
Freud foi um outro maluco que propôs a ideia de que não temos domínio sobre uma parte de nós mesmos. Não estarmos no controle é tão ofensivo que ele elencou sua teoria como uma das grandes feridas narcísicas da humanidade. A primeira foi quando Copérnico mostrou que a Terra não é o centro do Universo. A segunda, quando Darwin mostrou que o ser humano não é resultado de criação divina, mas de evolução natural. A terceira, quando Freud nos apresentou o inconsciente. A quarta ferida narcísica é que robôs já escrevem livros que vendem mais que os meus.
Há tanto na vida que não depende de mim, que não posso controlar. A velocidade que as coisas acontecem, que nunca é tão rápido quanto eu gostaria. O tempo, de forma geral. A morte. O que os outros podem interpretar daquilo que escrevo. O que os outros me dizem, ou o que preferem não dizer. Os estímulos que chegam até mim. Os roncos da minha barriga. Tem que haver algo, pelo menos aqui dentro, que esteja sob meu domínio, não? Pelo menos uma coisa.
Quase sempre começo a escrever um texto sem saber onde ele vai dar.
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"Mesmo se vocês não estivessem aqui, eu estaria fazendo a mesma coisa. Traduzindo meus demônios em uma espécie de saída estética, dando a eles uma voz, antes que eles possam me derrubar. Então eu ainda faria isso, se vocês não estivessem aqui. Mas o fato de vocês estarem aqui muda todo o aspecto dessa minha iniciativa pessoal. Se não fosse por vocês, eu seria apenas um cara envelhecendo e gritando para o vácuo de um Universo que não se importa. Vocês estão criando algo aqui. (...) Vocês estão tirando algo daqui, e então recriando com suas próprias lentes. E cada um de nós está fazendo isso, esse empreendimento subjetivo. E estamos fazendo isso juntos, o que torna esse um empreendimento coletivo, subjetivo, objetivo. E essa coisa que está acontecendo neste exato momento é a definição mais próxima do que entendo como arte."
— Asaf Avidan, num discurso belíssimo sobre nossas paisagens internas.
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O sol voltou esses dias derramando sobre os corpos aquela sombra dura que fazia tempo eu não via. As pessoas foram em massa ao parque, seguir o chamado da natureza servindo vitamina D grátis. Somos mesmo mosquinhas atraídas pela luz.
Ainda frio, mas as pessoas já esticadas no gramado, como se fossem um monte de Jéssicas. Foi uma prima que veio nos visitar outro dia que apontou para aquelas florzinhas coloridas que brotam da grama no início da primavera e falou "olha, quantas Jéssicas". Não sabíamos o nome real da flor. Por que logo Jéssica? Não interessa. Agora só consigo chamá-las assim.
Claro que foi só abrir um solzinho para eu avistar as primeiras bundas de fora na beira do rio. O maior ventão, eu ainda de casaco de inverno, mas os alemães não perdem tempo. O que leva esse pessoal a entrar pelado numa água gelada dessas?
Se sou chamada para sessão de desenho com modelo vivo, vou. Mesmo que faça força para não ir, tem algo mais forte que eu. O que gosto é de exercitar meu olhar para as pessoas. Elas nem precisam estar paradinhas, posando. No parque, nem levei meu caderno. Tirei uma foto com a mente, que é a que uso de referência para recriar a imagem com essas palavras.
Fico pensando na aleatoriedade das cenas que presencio quando observo o cara sair sem roupa do rio e sentar na toalhinha que estendeu sobre as pedras. Não tenho escolha sobre o que fatalmente vai virar material para a minha escrita. Às vezes o modelo vivo vem com a bunda de fora, fazer o quê?
Ainda é possível fazer algo das coisas inesperadas que recebemos da vida. E então desenho essa cena com todos os detalhes possíveis, para lembrar de me abrir ao que está fora do meu controle. Me deixar atravessar por completo, como quem entra sem roupa no rio.
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O processo ensina a perder o controle. Aprender são outros quinhentos.
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Pra quem é viciado em links
Olha só quem veio fortalecer o trampo de uma artista brasileira viva: a Seiva ♡
O mais legal é poder abrir esse espaço na newsletter para apresentar uma escola-editora que traz cursos, livros e vários conteúdos voltados para estimular a criatividade.
A Seiva também traz doses de inspiração no insta e em uma newsletter diária chamada Aurora, que chega bem cedinho recheada de links e com uma curadoria de imagens bem aesthetics, do jeito que eu gosto. Minhas pastas do Pinterest agradecem.
Eu estava curiosa para saber como era a rotina de fazer uma newsletter diária. Então eles me contaram que nos bastidores a equipe chega a fazer um "bolão" para tentar adivinhar qual vai ser o link mais clicado de cada edição. Às vezes, o que mais vai chamar a atenção dos leitores é completamente inesperado, tipo quando o link mais clicado do dia foi "conheça o site que pode fazer você curtir a internet novamente". Nostalgia é imbatível, impressionante.
Hoje a Aurora está completando 2 meses de vida, com 44 edições! Fica aqui meu convite para você também receber no seu email de segunda a sexta um punhado de sementinhas de novidades, inspirações e aleatoriedades. Só clicar aqui, para assinar grátis:
No capítulo anterior:
Um leitor me disse que se as aulas de história da arte fossem divertidas como esta edição sobre o Dürer, teria prestado mais atenção, o que muito me alegra (no meu colégio não tinha aula de história da arte, snif snif):
Em tempo, encontrei no meu Oráculo de Artistas a carta com o Dürer e talvez o que ele tenha a dizer seja o que você precisa ouvir:
Fábula rasa
Escrevi minhas impressões sobre o filme Pobres Criaturas e o texto teve uma repercussão que eu não imaginava.
"...via em todo canto o filme ser definido como um Frankenstein feminista, seja lá o que isso signifique, e sempre acompanhado de palavras como liberdade!, empoderamento!, autodescoberta feminina!, de uma forma que eu só tinha visto até então ser usada para vender absorvente."
Tendência
Os Valekers têm visto muitas águas-vivas. Com que frequência? Todo o tempo.
Se por acaso sentir vontade de me responder, não se segure. Meu email e minha caixa de comentários estão sempre abertos pra você.
Vem brisar comigo sobre livre-arbítrio. Preciso acreditar que existe!
Até a próxima edição!
Beijo grande,
ÂNCORA
~
Será que eu me engano
pensando ser 'dono de mim'?
~
Tenho sérias dúvidas de que
não seja mesmo assim!
~
Talvez meu senso de dever me
faça crer que posso decidir, escolher.
~
E tenho escolhido não repetir velhos erros
só de birra, pra ver o que possa acontecer...
~
Dirigir-se cansa, por exigir que fiquemos
atentos, pensando no próximos passo a dar.
~
Impregnados de princípios e valores
talvez seja mais sereno nos deixar guiar.
~
João é um cara bacana, Aline sempre faz o bem
Renata sonha, luta, realiza e nada a detém
~
Tiago vacila por não pensar logo adiante
Suzana quebrou a bússola e diz
ter se tornado errante...
~
Ser 'dono de mim' teria a ver com cultivo,
com pomar, horta, com fazer jardim?
~
Eu seria uma ilha, um continente ou
terras a conquistar num mundo
desconhecido até de mim?
~
Teimosamente evito repetir erros
para ver no que vai dar...
~
E tenho criado ferramentas finas
de calibragem para tudo ajustar.
~
Ah, eu vivo cada instante intensamente,
livre, sem ter com o que me preocupar...
~
Abel Sidney
9mar2024
a gente não controla quase nada, mas precisa se convencer do contrário para não pirar com a aleatoriedade da vida.