Oi, oi.
Estava lendo "Writing down the bones", da Natalie Goldberg, quando bati o olho em um trecho que me levantou para o impulso de te mostrar.
O livro é um tipo de autoajuda para escritores, não que seja ruim, mas o que me irrita um pouco em livros de autoajuda escrito por norte-americanos é o quanto tendem a ficar repetitivos. Partem de uma ideia simples ou de uma hipótese que caberia em um post de blog e conseguem prolongá-los por páginas e páginas. Que vão vender milhares e milhares de exemplares. É um belo talento esse. Me falta.
Natalie vai de lições budistas a dicas para estimular a criatividade que envolvem segurar um cigarro apagado entre os lábios. Só pego na mão dela e vou, mesmo achando tudo tilelê demais, logo em seguida ficando impressionada com algum trecho muito bonito no caminho. Ela lança umas visões que minha nossa. Me pegaram de jeito. Foi o que aconteceu no capítulo "Going Home":
"É muito importante voltar para casa se você quer que seu trabalho seja inteiro. Você não precisa voltar a morar com seus pais e receber uma mesada, mas você deve reivindicar de onde você vem e olhar profundamente para esse lugar. Venha a honrá-lo e abraçá-lo, ou, ao menos, aceitá-lo. (...)
Mas não volte para casa para ficar lá. Você volta para casa para ser livre; para que você não evite qualquer aspecto de quem você é. Se você evita alguma coisa, isso se torna óbvio na sua escrita. (...)
Ouvimos sobre gente que vai atrás de suas raizes. Isso é bom, mas não se prenda à raiz. Há o galho, a folha, a flor. Em Israel, buscando por minhas raizes, percebi que enquanto eu era uma judia, eu também era uma americana, uma feminista, uma escritora, uma budista. Somos produtos da era moderna — é nossa riqueza e nosso dilema. Não somos uma coisa só. Nossas raizes estão se tornando mais difíceis de desenterrar. Ainda assim, elas são importantes e as mais fáceis de evitar porque com frequência é onde há muito dor incorporada ali — motivo pelo qual partimos, em primeiro lugar."
— Natalie Goldberg, em "Writing down the bones", tradução livre
Como tem sido doloroso desenterrar essas raizes. Fico na dúvida se me meti em uma encrenca que só vai servir para me deixar mais biruta ou se estou justamente no caminho de fazer algo excitante. Não tem como saber. Daqui uns anos te conto.
Mas talvez queiram dizer alguma coisa as questões que persistem e insistem e voltam para bater na minha porta, não importa quantas vezes eu recuse atendê-las ou finja que não estou.
Se você evita algo, isso se torna óbvio. Penso no quanto exerce um poder sobre nós tudo aquilo que precisamos fazer um esforço para evitar. O que nos afeta, de verdade, a um nível profundo, sempre volta. Nada pode valer mais a pena escrever do que isso.
Teoria da bolsa
Outra leitura que me impactou esses dias foi o ensaio "The Carrier Bag Theory of Fiction", da Ursula Le Guin, escrito em 1986.
Ela parte de uma citação da autora Elizabeth Fisher em "Woman's Creation", que diz que o primeiro artefato cultural foi provavelmente um recipiente. Algo que servisse para coletar e guardar outras coisas.
Ursula extrapola essa teoria para o campo das narrativas. Faz um belíssimo exercício de imaginação e volta à pré-história, para tentar se colocar na perspectiva desses hipotéticos primeiros humanos.
Desfaz a cena de 2001: Uma Odisseia no Espaço, ao se recusar a acreditar que a ferramenta que marca o início da história humana tenha sido uma arma. Não, não foi uma arma, foi uma bolsa.
Uma sacola para guardar a comida coletada no caminho, um recipiente para conter aveia, uma rede para segurar o bebê e manter as mãos livres para pegar o que quiser, o que é útil, comestível ou bonito e levar para casa, a casa sendo outra enorme espécie de bolsa ou sacola, um recipiente para pessoas.
Ursula lembra que antes de termos as ferramentas que forçassem energia para fora, tínhamos a ferramenta para levar energia para dentro de casa.
"O romance é um tipo de história fundamentalmente não-heroico. Claro que o Herói frequentemente assumiu o comando, sendo essa sua natureza imperial e seu incontrolável impulso, de dominar tudo e criar decretos e leis para controlar seu impulso incontrolável de matar. Então o Herói decretou, em primeiro lugar, que a forma adequada da narrativa deve ser a da flecha ou da lança, começando aqui e indo direto para lá e TCHOK! atingindo seu alvo (que cai morto); em segundo, que a preocupação central da narrativa, incluindo o romance, é o conflito; e terceiro, que a história não pode ser boa se ele não não estiver nela.
Discordo disso tudo. Iria mais longe ao dizer que a forma natural, adequada e apropriada de um romance deve ser a de uma bolsa, uma sacola. Um livro segura palavras. Palavras seguram coisas. Elas suportam significados. Um romance é um pacotinho de ervas medicinais, segurando coisas que se relacionam entre elas e entre nós de uma forma particular e poderosa."
— Ursula K. Le Guin, "The Carrier Bag Theory of Fiction", tradução livre
Você pode ler completo (em inglês) aqui.
Por falar em herói
Pensando bem, a teoria de Ursula faz sentido mesmo na jornada de um dos meus heróis clássicos favoritos.
Antes de ter uma espada, o herói já tem uma mochila.
Isso é verdade na história do herói de The Legend of Zelda, inventado por um garoto japonês que adorava explorar cavernas e que mais tarde se tornaria Shigeru Miyamoto. A capacidade de recolher itens é um aspecto central nesse jogo.
Contei essa história em um episódio de Bobagens Imperdíveis, em que também falo sobre Robin Hood e como a Idade Média foi um período de rebeldia e chacota.
Como muita gente passou a acompanhar minha newsletter esse ano, talvez não conheça meu podcast. Será que você já conhece? Ou não? Não sei mesmo, me conta.
De qualquer forma, vou aproveitar para te deixar esse convite para ouvir:
Contar até 100
Encontrei uma série de vídeos em que cada número é contado por uma pessoa com aquela idade. Foi muito interessante assistir essa linha numérica representada por rostos e vozes de lugares tão diferentes.
Primeiro, enxergar nos rostos brasileiros um pedaço de quem também sou. Depois, a espera pelo número que representa minha idade. Quase numa tentativa de enxergar o caminho que já acumulei até aqui.
Acima de tudo, ver o tempo passando.
Também uma ótima forma de descobrir como se fala os números em cada idioma. Além do vídeo acima com o 0 a 100 do Brasil, vi esses aqui:
Nas edições anteriores
O ranço é mesmo uma força poderosíssima, não?
Preciso de uma bolsa maior para caber tudo o que coleto quando mergulho nos romances da Elvira Vigna.
Setembro foi um mês que pareceu ter duas semanas. Que loucura, de que buraco tá escorrendo tanto tempo? Foram dias intensos, de muita preparação e trabalho e, por que não, de muito transtorno mental.
No próximo mês, estarei no Brasil. Voltar para casa.
Devo mandar um email avisando qual será meu paradeiro. Darei oficinas e quero fazer um evento de lançamento para o livro que saiu durante a pandemia.
Vai ser um tempo curto para fazer tanta coisa, por isso você não deve me ver mais vezes na sua caixa de entrada até eu voltar.
Mas a gente ainda se encontra. Espero voltar com a sacola carregada de histórias para contar.
Um beijo,
Aline, boa tarde.
Muito legal a sua forma de escrever.. seus comentários e indicações de leituras e tudo o mais.
Abraços e luz de um senhor de 86 anos.
Parece piada, mas esses dias mesmo eu estava pensando que o primeiro humano que pegou uma pele animal ou uma folha grande e embrulhou em forma de sacola para carregar coisas deve ter causado um FRISSON na sua comunidade. Bom saber que mais gente pensa nisso.