Bentinho,
nós dois sabemos que a melhor forma de esconder algo é deixando bem à vista. Por escrito, até. Porque as pessoas preferem evitar a fadiga de ler, se leem não prestam muita atenção, se prestam, olham para os lugares errados. Mas o que se escreve, não se escreve por acaso. Duvido que você tenha escrito esse baita calhamaço apenas para sustentar uma suspeita que não é mais sólida do que neblina pairando no ar.
Acreditar nisso seria subestimar muito a sua formação em Direito. Como peça de acusação, seria ridículo apresentá-la em qualquer tribunal. Não passaria dos choramingos de um homem que acha que a mulher o traiu com o melhor amigo, mas simplesmente não tem evidências de nada, fora as vozes de sua cabeça. Ainda assim, mais de século depois, a pergunta que continua a ecoar é: Capitu te meteu uns chifres ou não?
Juro para você. Pelo menos uma vez por ano as pessoas discutem isso na internet. O que faz com que, daqui de onde escrevo, você não seja visto com muita simpatia. Ciumento, ridículo, paranoico, corno, tóxico, só para citar os epítetos mais leves. Nada fora do esperado para quem há muito tempo está acostumado a receber apelidos tipo "casmurro", certo?
Embora a hipotética infidelidade de Capitu tenha estado sob os holofotes e minuciosas lupas de gerações de leitores, porque ambiguidade é um bichinho que desperta as mais profundas coceiras, entendo que Capitu não é o foco da história, que o foco aqui é você, sempre foi. Claro, está no título do livro!
Por isso acredito que a pergunta que importa não é se Capitu te traiu ou não, mas sim: o que te deixou tão casmurro na vida? A mim parece que é esta a história que você conta.
Então não, não é uma peça de acusação. É um termo de confissão.
Não se pode ignorar que você escreveu um livro extremamente católico. Cheio de alegorias cristãs, teorias sobre o mundo ser uma ópera composta por Deus e musicada pelo Diabo, missas e livretinhos de santos, promessas feitas a Deus, a inescapável autoridade da igreja.
Você passa mais da metade do livro narrando a novela do seminário: você tentando fugir da promessa feita por sua santíssima mãe, de você se tornar padre. Mas e o amor por Capitu? Não, você nunca quis vestir a batina. Mas e a devoção à sua mãe? Complicado.
Confrontar o desejo da velha não era uma opção, tanto é que você não o fez. Teve que arrumar uma saída pelas beiradas, qualquer uma que não envolvesse você bancar sua vontade e dizer com todas as letras que não queria ser padre, que não queria a vida que a sua mãe imaginava para você. Entendo perfeitamente: soluções que parecem simples para quem está de fora, podem não ser saídas possíveis quando a gente consulta nossos mapas internos. Passagem interditada.
Você se viu tão enrolado por essa situação que chegou a desejar, quando sua mãe adoeceu, que ela morresse. Tornaria tudo mais fácil. Sem precisar fazer nada, estaria livre da imposição que te aguardava. Um pensamento passageiro, desses que nos pega de surpresa, dos quais a gente se arrepende na mesma hora.
Deve ter sido numa dessas que o Diabo foi inventado: para a pessoa poder se fragmentar e atribuir a um ser externo essa parte horrível, cheia de desejos destrutivos ou proibidos, que ela encontrou dentro de si mesma.
Também fui criada no puro suco do catolicismo, sabe. Conheço aquele versículo que fala que quem peca em pensamento já está pecando. O que é uma ideia horrorosa, de deixar a gente apavorado com os próprios pensamentos, porque a sua imaginação pode te condenar ao inferno! Posso então entender como foi forte o remorso que bateu. Pensar na mãe morrendo para sua conveniência seria praticamente matá-la, ainda que por uma fração de segundos. Por isso o instantâneo arrependimento e prometer rezar duas mil ave-marias, qualquer coisa para reparar o estrago desejado, ainda que não-realizado.
Não te julgo por isso. Aliás, fico comovida de você ter confessado para mim, sua amiga leitora, coisas que não teve coragem de admitir nem mesmo para Deus, pelo sacramento da confissão.
No final das contas, sua mãe viveu longos anos e você fez o que ela queria, estudou um tempo no seminário — onde aliás fez um amigo para a vida inteira, Escobar. Esse que te traz dor só de ouvir o nome. A questão é que, mesmo não tendo se tornado padre, você nunca deixou de ser católico.
E tem algo mais católico do que a culpa?
Ilusionistas são mestres em controlar a atenção do público. Eles conseguem conjurar objetos ou realizar teletransportes e levitações impossíveis simplesmente ao fazer seu público se concentrar em algum ponto — em um gesto, ou no seu charme e carisma contando piadas, ou ainda distraindo sua audiência com alguma narrativa envolvente — enquanto realizam o truque do outro lado, sem que o público perceba.
Você fez algo assim na sua história, Bentinho. Você chama a atenção para algum ponto da narrativa (por exemplo, suas insinuações sobre Capitu ter te traído), para esconder algo ainda mais doloroso, ainda mais intolerável.
Consigo deduzir isso porque é algo que as pessoas fazem o tempo inteiro. Não é uma exclusividade de mágicos ou de narradores pouco confiáveis. Estamos com frequência tentando desviar o foco quando martelamos muito um assunto, ou projetamos uma certa imagem de nós, apenas para encobrir alguma outra parte nossa que temos dificuldade de assumir ou de encarar.
O que então pode ser mais terrível do que a fantasia de que a sua mulher e seu melhor amigo estavam tendo um caso?
Outra fantasia.
Por um momento, ainda que breve, você sentiu atração pela mulher de Escobar. Foi apenas um olhar diferente, um enigma que você tentou decifrar, um aperto de mão mais demorado, a pele quente apertada entre seus dedos, sua imaginação de repente acesa, você tomado pelo desejo de apalpar os braços de Sancha com mais firmeza.
Pecar em pensamento já é pecar, o seu seminarista interior te lembra. Desejar a mulher do amigo já seria culpa o suficiente, se não fosse pelo que aconteceu logo depois, dois capítulos adiante. Essa proximidade não é fortuita. Nada se escreve por acaso.
Você é um narrador muito habilidoso, capaz de estender o tempo para preenchê-lo de detalhes, como a textura do cabelo de Capitu quando você os trançou no quintal de sua antiga casa, ou quando você não poupa tinta ao transcrever com minúcia os longuíssimos discursos de José Dias, ou a troca de cartas sobre a guerra da Rússia com o pobre Manduca. Por isso suspeitei quando você passou de rasante pelos pontos mais traumáticos da história, quase como um pedido para que eu não olhasse tão a fundo. Truque do mágico em ação.
O seu melhor amigo morre numa catástrofe que é narrada em meros três parágrafos. Essa economia de palavras me espantou. A culpa não deixa mesmo espaço para mais nada. Ela se derrama, absoluta.
Tanto se derrama que às vezes escorre para o outro: o peso de ter cometido um adultério imaginário, às vésperas da morte de Escobar, deve ter sido tão insuportável que você teve que projetá-lo para Capitu. Pra mim continua um mistério o mecanismo que faz esse tipo de tilt mental acontecer, mas acontece. É muito comum acusarmos alguém daquilo que mais nos incomoda em nós mesmos.
Escrevo tudo isso apenas para dizer que sinto muito, que entendo como a morte de Escobar te devastou. Tão forte, tão jovem, e tão de repente arrancado da existência. Diante de uma morte tão próxima, a gente se depara com nossa própria vulnerabilidade. Com o vazio da perda. Mas sufocar os sentimentos dessa forma nunca funciona, meu amigo. Tanto é que você passou a ver Escobar na figura de seu filho. Não percebo como evidência de uma traição, mas como prova de seu amor por Escobar, da falta que você sentia dele e não sabia como processar. Você arrumou uma forma (bizarra, eu sei) de mantê-lo presente. De ressuscitá-lo.
Quando você escreve o livro, você também já perdeu o filho, outra morte trágica, horrível, narrada tão brevemente. Porque é difícil se demorar nos capítulos mais doloridos. Talvez por isso você insistisse tanto na hipótese de Ezequiel ter sido fruto de uma traição, para justificar a culpa de ter sido um pai ausente, de não poder ter feito nada para impedir que ele morresse tão jovem, de ter afastado as pessoas que você mais amava. O amor, às vezes, também pode ser insuportável.
Sim, você pode ser o que muita gente abomina: um playboy escravocrata, um machista inseguro, alguém com pouca personalidade que só repete o que os outros te dizem, um mentiroso, um carioca (complicado!), um narrador nada confiável (como confiar num cristão que sequer paga as promessas que faz a Deus??), um homem amargurado que se afasta de todos; o que te torna o Diabo perfeito para os leitores apontarem o dedo e projetarem em você tudo aquilo que não conseguem aceitar neles mesmos, quando na verdade estamos mais próximos de você do que gostamos de imaginar.
Do lado de cá, estamos também fazendo truques de ilusionismo para esconder dos outros e de nós mesmos o que nos é intolerável encarar, enquanto tentamos nos construir como essas figuras santas, virtuosas, idealizadas, vítimas das circunstâncias, nas páginas de nossas narrativas pessoais. Quanto sofrimento isso também não abafa?
Por isso agradeço a sua coragem de ter narrado essa história, ainda que ela evidencie suas partes mais detestáveis, seus pecados mais inconfessáveis, mesmo que expor tudo isso signifique ser cancelado por gerações e gerações, o que, para os dias de hoje, é uma espécie de inferno.
Espero que você tenha encontrado na escrita a absolvição que você procurava.
Um beijo, da sua
Amiga leitora.
Dom Casmurro, de Machado de Assis, está em domínio público e pode ser lido de graça aqui. Eu não sou paga para falar dos livros que gosto de ler, portanto, uma forma de mostrar que apreciou o texto de hoje é comprando Dom Casmurro ou qualquer outro livro por meio deste link, por onde posso ganhar umas moedinhas. Obrigada!
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Um beijo e até a próxima edição,
Eu imagino Machado de Assis, onde quer que ele esteja agora, feliz e pensando assim "finalmente alguém leu meu livro"
Nossa, Aline, adorei não só o teor da sua análise como a forma que você escolheu compartilhá-la conosco. Golpe de gênio, como de costume com você, né ❤