Nem sempre estou olhando para o que é agradável ou bonito. Na edição dessa semana vou te mostrar algumas leituras e indicações que me lançaram no desconforto, sobre temas que me incomodam ou me embalam no gostoso desespero de saber que nada de bom pode vir dessa história. Espero que aprecie se incomodar junto comigo nessa piscininha de angústias! Se preferir dar uma olhada nas minhas entranhas, você pode ler o texto da semana passada, Atmosfera de uma tonelada.
Amor de fã
Dre é uma das fãs mais devotas de Ni'jah, uma cantora pop com uma enorme "comunidade" de fãs que a veneram.
Ni'jah é quase uma deusa: absoluta, enfeitiçante, com o poder de inspirar e salvar vidas. Dre é uma casca vazia, um mero receptáculo. Depois de perder tudo o que tinha de mais importante, ela preenche esse buraco defendendo sua ídola de qualquer um que ouse criticá-la no Twitter.
Ela começa a ficar viciada em cancelar haters, usando um método, digamos, mais brutal. Dre não consegue parar, nem tenta. É viciante experimentar esse gozo que vem na forma de se encher de Ni'jah — e do sangue que Dre derrama em nome de sua diva.
"Este não é um trabalho de ficção. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, ou eventos reais, é intencional": é assim que começa cada episódio da série Swarm, criada e dirigida pelo meu queridinho Donald Glover, dando uma pista de que estamos diante de uma história que reflete a relação macabra que criamos com as celebridades.
Foi uma leitora que me indicou assistir, dizendo que era a mesma vibe de Atlanta. Moça, eu amei a indicação. Mas você mentiu pra mim! É uma série extremamente perturbadora, pesadíssima, desconfortável.
Claro, tem a pegada Donald Glover de dar um toque de surrealismo na medida certa para a história ficar no meio do caminho entre a fantasia e a realidade, como faz em Atlanta e em outros trabalhos dele que gosto por ter a mesma consistência dos sonhos, algo de absurdo, surreal. O absurdo de Swarm, porém, nada de braçada nas águas do horror.
Isso não impede que Donald Glover faça deboche: não há nenhum esforço em disfarçar que a cantora alvo da devoção de Dre seja inspirada na Beyoncé. O fandom de Ni'jah, a Beyoncé da série, é conhecido como enxame, fazendo referência à colmeia da Queen B, na vida real. Vários eventos mostrados na série são referência a episódios reais que já rolaram com a cantora.
Swarm não deixa de ser mais um projeto musical de Donald Glover: depois de Childish Gambino, da jornada artística de Paper Boi, agora ele tem Ni'jah, que pode ser apenas uma personagem, mas tem álbum no Spotify e tudo.
Eu gosto muito de como Donald Glover aborda em suas histórias essa questão da fama. Nada mais absurdo e horripilante do que essa sociedade que orbita ao redor das mídias e da figura das celebridades. É tanto brilho que essas estrelas projetam que já não conseguimos enxergar direito a realidade.
Jogo viciado
Você vai a um parque de diversões e vê alguém andando pra lá e pra cá com um urso de pelúcia gigante que ganhou ao arremessar argolas ou bolinhas no alvo, em uma daquelas barraquinhas de jogos. Você pensa: se aquela pessoa conseguiu o grande prêmio, eu também consigo. E então você tenta. Gasta várias tentativas e nada. Que azar! Sua mira não estava tão boa esse dia. Você sai da brincadeira com menos dinheiro e se sentindo um fracasso.
O que você não vê é que o jogo é viciado. Por algum mecanismo de alavancas escondidas, o responsável pela barraquinha consegue controlar o alvo e fazer as bolinhas sempre quicarem para fora. Ninguém ganha o grande prêmio a não ser que o dono do jogo queira. E ele deixa um ou outro trouxa ganhar o urso gigante justamente para sair desfilando com o grande prêmio por aí e fazer outros trouxas acharem que podem se dar bem no jogo.
Isso é exatamente o jogo das redes sociais. Selinhos de verificados, perfis que alcançam centenas de milhares de seguidores em poucos meses, posts que chegam a milhões de views: a gente vê o tempo inteiro gente desfilando por aí com esses "grandes prêmios", o que faz o resto de nós pensar que é um lugar alcançável, que também podemos chegar lá. Mas esse jogo também é viciado. As plataformas conseguem manipular seus mecanismos para fabricar esses grandes vencedores, que vão "inspirar" outros a seguirem o mesmo caminho, a produzirem conteúdo usando as mesmas fórmulas, a movimentarem esse iluminado e extasiante parque de diversões.
Mas quem ganha, como sempre, são os donos do jogo. Que passam a ter multidões tentando a sorte para se tornar celebridades dentro de suas plataformas, dedicando tempo, dinheiro, atenção e esforços nesses joguinhos de azar. Passam então a trabalhar perseguindo um algoritmo que muda de direção arbitrariamente de tempos em tempos, sem nunca alcançar o prometido sucesso, como se fossem funcionárias de um patrão que não revela nunca por quais critérios está avaliando a performance de seus trabalhos.
A gente corre nas nossas rodinhas de hamsters para que os donos das plataformas possam voar, etc.
O futuro da newsletter
É assim que as plataformas morrem: primeiro, elas são ótimas para seus usuários; depois de torná-los totalmente dependentes do serviço, elas abusam do usuário para favorecer seus clientes de negócios (fornecedores, anunciantes, investidores). Por fim, elas abusam desses clientes para tomar de volta o valor apenas para elas. E então, morrem. Quer dizer, até continuam de pé, mas completamente apodrecidas por dentro.
Quem tá dizendo isso não sou eu, é o Cory Doctorow. Em um processo que ele chama de "Enshitification": o de tornar uma plataforma progressivamente uma merda. Já vimos acontecer com empresas como Amazon, Facebook, Twitter. O
, a plataforma que no momento utilizo para fazer meus textos chegarem no seu email, está indo pelo mesmo caminho.Substack começou como um oásis, oferecendo um bocado de recursos que facilitou criar uma newsletter e crescer o público dentro da plataforma. Então começou a querer se tornar uma rede social e até incorporou uma cópia do Twitter entre seus recursos. Quer engolir a maior fatia do espaço digital que conseguir.
Quando ouço gente dizer "tô pensando em começar um Substack", fico ressabiada: a empresa está conseguindo se tornar sinônimo de newsletter. O que é péssimo para quem escreve newsletters: de repente viramos reféns de um cercadinho que reivindica ser dono do que fazemos, do meio em si, e assim ficamos sujeitos à arbitrariedade de uma empresa que, como vimos tantas outras vezes, pode mudar as regras a qualquer momento e nos deixar sem nada.
O Rodrigo Ghedin escreveu sobre a ameaça que se avizinha com o Substack querendo monopolizar todo um segmento: "é uma espécie de bomba relógio corporativa que, quando explodir, destruirá incontáveis pequenos negócios baseados em newsletters".
Estamos no meio de um processo de usuários sendo sequestrados por uma plataforma. Odiaria ser a alarmista do rolê. Mas já tenho muito tempo de internet para saber que essa centralização não tem como terminar bem.
Apoie o trabalho desta escritora enquanto ela ainda está viva, pelo amor de deus 💀
O produto sou eu
Na sociedade contemporânea, que funciona como uma rede em vez de uma comunidade, o coletivo perde espaço para o individualismo. Nesse contexto, surge a celebridade: um rosto familiar que une as pessoas, dispersas e confusas, em torno de algo que todas elas possam reconhecer. Diferente dos heróis que se destacam por oferecer suas habilidades em favor do coletivo, as celebridades não precisam fazer nada realmente fantástico: é uma fama redundante, onde você se torna famoso por ser famoso.
Aí reside minha principal frustração com essa nova forma de habitar a internet: ser bem-sucedida como escritora significa se tornar uma celebridade, assumir o fato de que as pessoas não querem consumir apenas o que você faz, mas querem consumir você.
Chega o ponto em que as selfies e os livros do escritor que gosto fazem parte da mesma obra, e ambos são partes dele que preciso consumir. Não basta ouvir Caetano; queremos comer Caetano, devorá-lo, degluti-lo, mastigá-lo.
É o mesmo culto à celebridade, cujo poder, de volta às teorias de Bauman, deriva da autoridade do número: “ela aumenta (e diminui) com o número de espectadores, ouvintes, compradores de livros e discos”. Ou seja, é um poder que flutua, que não nos pertence de fato, se depende de números que fogem ao nosso controle, de uma audiência que em um momento está lá, e no outro pode desaparecer.
Esse é um trecho do texto "A escritora que querem comer viva", que escrevi no remoto ano de 2018 e que continua bastante atual. Uma internet de canibais, cada vez mais. E o que querem os canibais ao chupar seus ídolos até os ossos, se não tornar-se como eles, tomar para si um pedaço desse sucesso?
Todo mundo lendo a mesma coisa ao mesmo tempo
Nada mais pavoroso do que ver tudo ficando igual. Os rostos harmonizados seguindo o mesmo padrão, os conteúdos cada vez mais parecidos, as histórias seguindo as mesmas fórmulas, os filmes que são apenas uma sequência ou um reboot ou uma adaptação de outras histórias que já vimos antes, as pessoas copiando os mesmos passos de quem elas julgam serem bem-sucedidas. Com livros não é diferente. Para quê perder tempo com uma leitura se ela não é trend?
escreveu um texto sobre como o mercado literário está perdendo diversidade, com o público leitor se interessando sempre pelos mesmos livros: "Muitas vezes todo mundo dá atenção para os mesmos livros. Apesar dos caminhos inesgotáveis, andaríamos meio que juntos sempre numa mesma direção."Evidente que tem MUITO dinheiro e trabalho de marketing por trás dos grandes sucessos de venda, ou mesmo dos nomes considerados os "gênios" literários do momento. Ainda assim, essa fabricação de fenômenos só funciona porque se aproveita do comportamento de grande parcela do público leitor, de gostar mais de estar por dentro do que TODO MUNDO está lendo do que de ler. Uma busca por pertencer, antes de qualquer coisa.
Poxa, mas que mal há em as pessoas buscarem um tico de sentimento de familiaridade em tempos de tanta insegurança e dispersão? Um rosto conhecido ou uma obra familiar a todos tem esse poder de unir. Mas também de massificar. De criar monoculturas, explorando ao máximo um produto que faz sucesso. Veja se não é o que o Brasil faz há meio milênio com a sua produção agrícola. Claro, vamos fazer o mesmo com a nossa produção cultural. Vai dar certinho.
Qual é o meu maior talento? Sou ótima em imaginar tudo o que pode desmoronar. Minha criatividade para criar os piores cenários não se esgota. Esse vídeo aí sou eu todinha.
Minha cabeça passa maior parte do tempo no futuro. Nem tudo o que visualizo se concretiza, mas para meu azar, muito acaba acontecendo sim. Deveria investir mais nisso. Bem que me disseram que eu podia ser escritora de ficção científica. Será? Meu sentido aranha me diz que é roubada.
Nos vemos na próxima edição. Nesse caso, não é uma previsão. É um convite.
Um beijo canibal,
Estou muito próximo de começar a mandar cartas físicas pelos correios
Um dos maiores produtos de sucesso de start up brasileira é um livro sobre branding, que ensina pessoas a construírem a própria marca. A novidade é que agora eles têm uma versão para pessoas que não vendem nada, só querem brilhar nas redes. Viver tornou-se construir uma marca, ser uma empresa, transformar sua personalidade em produto e, talvez, faturar. Eu tô mais perdida que cego em tiroteio. - sobre o substack mana, será que tem outra plataforma? Ou ainda vale entrar nesse Titanic antes que bata no iceberg?