Aprender alemão tem sido a emocionante jornada de terminar a semana deitada no chão me perguntado: "por que sou tão burra?" Eu sei, dramatizo demais da conta, estou acostumada a ser muito dura comigo mesma. Mesmo assim, a angústia está lá. Sei muito pouco e, quanto mais aprendo, mais tomo consciência de que falta muito para eu conseguir atravessar um diazinho que seja sem ser humilhada pela sensação de não entender porra nenhuma.
A vantagem de ter autoestima abaixo do nível do pré-sal é não ter muito apego a uma suposta auto-imagem de pessoa inteligente, articulada. Posso bancar o papel de ridícula, errar bastante, cometer gafes, construir frases com a mesma desenvoltura de uma criança de três anos. O bom de estar em construção é não precisar zelar por reputação alguma.
Paciência. É do que preciso para suportar alguns meses nessa sensação horrível até que eu possa começar a me sentir à vontade nesse idioma de lógica matemática, que empilha palavras como se engatasse vagões de um trem. Paciência é tudo o que eu não tenho, especialmente quando estou nesse lugar pavoroso que é o meio do processo.
Assisto a uma aula do Christian Dunker sobre Psicanálise, quando vejo, estou de novo em situação de aprender alemão. Estou sendo perseguida, não é possível.
Ele explica a origem de palavras em alemão para conhecimento, que se referem a diferentes tipos de saber. Gewissen, por exemplo. Significa consciência. Um saber que se sabe. Eu sei onde fica a estação de metrô. Eu sei que a Terra está girando ao redor do Sol. Eu sei que vou morrer. Unbewusst, por outro lado, é o que não se sabe. Na Psicanálise, foi traduzido como inconsciente. "Lacan é rigoroso ao dizer que uma boa tradução para inconsciente deveria ser não-sabido. O não-sabido que se sabe".
Outra palavra para falar de conhecimento é Kunst. Antigamente, era usada para falar de algo que se sabia fazer, de uma habilidade. Vem do verbo können, que até hoje serve justamente para isso: falar do que alguém é capaz de fazer. Kunst, no caso, tinha um recorte de classe, Dunker explica. Era usada para falar de habilidades das classes mais nobres. Entendia-se que o tipo de saber que um padeiro tinha era diferente do tipo de saber de um cavaleiro ou de um sacerdote. Com o tempo, o sentido da palavra se transformou. Hoje, Kunst é a palavra para arte.
Fico encantada ao aprender que em sua origem, pelo menos no alemão, arte é uma forma de saber fazer. Uma habilidade.
Escrever uma nova história tem sido o processo doloroso de me debater com o que não sei. Não basta não saber alemão, agora estou desaprendendo o português? Eu ainda sei escrever? Vem a mesma sensação de burrice, de que talvez isso não seja para mim, de que nunca mais vou conseguir escrever nada que preste. Ter escrito outros livros antes parece não me ajudar em nada. A cada livro, sinto que estou começando do zero, que preciso aprender tudo de novo, que preciso reinventar o Universo. Por que ainda insisto nisso? Danço tango com a ideia de desistir. Mas, quando vejo, estou de novo sentada na cadeira, o teclado debaixo dos dedos, tentando aprender sobre os personagens que começam a se mover na tela.
Eu não sei nada sobre os personagens, mas me agarro ao pouco que sei: fazer perguntas. Escrevo para tentar respondê-las e, ao fim de um dia, sei um grãozinho a mais sobre quem são. Vai ver não tem outra forma de saber sobre o que é essa história que estou tentando contar, a não ser contando.
Um dia meu professor me pergunta sobre o que estou escrevendo. Entro em pânico, eu não sei direito sobre o que é a história ainda! Cedo demais para dizer, mesmo em português. Mas minha vontade de gastar o alemão é mais forte. Abro a boca, junto algumas poucas palavrinhas que sei e explico sobre o que é a história, quem é a protagonista, o que ela faz. Atravesso a frase com medo de soar idiota, mas o que encontro depois do ponto final é uma compreensão diferente sobre o que estou escrevendo. O nível do meu alemão me obriga a buscar a explicação mais simples. E dentro dessa simplicidade encontro o que estava dando voltas para encontrar: o ponto central da história.
Tentar comunicar o que sei em um idioma que não é o meu é o tempo todo redescobrir a novidade dentro daquilo que eu já tinha como natural. Quando tento explicar para os meus amigos estrangeiros o que é cachaça, ou farofa, ou o Cerrado, posso reexaminar coisas que me são familiares por um novo ponto de vista, posso experimentar o que há de inédito dentro delas. O mesmo acontece quando tento traduzir quem sou para outro idioma. É como poder descobrir quem sou por outro ângulo.
Um amigo que aprendeu a falar português muito bem me conta que aprender outro idioma é o processo de construir uma nova personalidade para si. "A linguagem é uma tecnologia de construir quem você é".
De fato, sinto que preciso me reconstruir do zero, átomo por átomo, ao tentar me comunicar em inglês ou alemão. Mas não em direção a uma Aline diferente, que precisa ser inventada. Pelo contrário: percebo que junto os caquinhos do que vou aprendendo para remontar a Aline que já sou, essa da qual não posso escapar. Isso fica mais evidente quando percebo que procuro no pouco que sei brechas para fazer comentários debochados, ou para fazer perguntas sobre tudo o que me deixa curiosa. É poder chegar no miolo, na essência de quem sou.
Aqui tenho descoberto a sensação de ser alvo de curiosidade. Basta dizer o que faço da vida e os olhares se abrem, empolgados. Sou soterrada de perguntas de uma forma que me surpreende. Super imaginava que o povo que vive aqui estaria acostumado a conhecer artistas. No Brasil, sentia que não era assunto interessante, o tipo de conversa que não desenvolvia. Talvez porque esperem que artista seja também uma celebridade (mas isso é assunto para outro texto). Ou talvez porque ninguém quer perguntar demais; é preciso mostrar o tempo todo que você já sabe. Ou que não há nada de novo a descobrir sobre alguém que você já conhece. Mas perguntar mesmo o que parece óbvio, não importa em qual idioma, é sempre abrir espaço para alguém poder redescobrir quem é.
Um outro amigo me apresenta a teoria da Ilha do Conhecimento, que aprendeu no livro de um astrônomo brasileiro, Marcelo Gleiser. Ele explica que tudo o que sabemos é uma ilha. O que não sabemos é o oceano. Vai vendo, metáforas com o mar é o tipo de didática que funciona comigo.
Acontece que essa ilha cresce. Quanto mais saber acumulamos, maior ela fica. Logo, também fica maior a borda que entra em contato com o oceano do não-saber. Daí vem a angústia, de que ainda há muito a aprender e descobrir. Não é que você sabe menos do que antes, é que cresce a consciência sobre o que falta saber. O não-sabido que se sabe.
O sentimento de burrice que me aterroriza então ganha um novo significado. É apenas sinal de que o processo está rolando, de que estou, de fato, aprendendo. Se sinto que é demais para mim, é porque estou olhando da borda, tendo uma vista mais ampla do oceano que me cerca. Estar em terra firme, na segurança do que já conheço, pode ser mais confortável, me fazer sentir inteligentona e confiante. Mas é com os pés metidos na água, levando um caldo ou outro enquanto tento descobrir o que há para além das ondas, o lugar que eu realmente quero estar.
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"Toda essa vida é linguagem, pura linguagem", agora era Martin que se debruçava em direção a Corina.
"Mas nada disso é para nós", concluiu Corina, embora não tivesse certeza de nada. A voz era dela, mas era seu corpo falando; afinal, toda vez que mergulhava, seu corpo a lembrava de que aquilo era uma ilusão, de que aquele não era o seu mundo, de que ela precisava de ar e de terra, que seu lugar era lá em cima. Tinha o corpo errado para viver embaixo d'água.
"Estamos em um país onde todos falam a mesma língua, menos nós. Então não, não é o nosso lugar. E, mesmo assim, olhe onde chegamos".
"Não importa quantas vezes eu visite esse lugar, é como se eu nunca fosse aprender o idioma local", Corina assentiu, assumindo seu papel de estrangeira. "Estar aqui é sempre estar às cegas".
"Estar no escuro não é tão ruim". Martin tirou os óculos, dobrou a blusa sobre as lentes e começou a esfregá-las. "É onde realmente podemos enxergar melhor."
— Trecho do meu romance As águas-vivas não sabem de si
Antes de ir, me conta: o que você está aprendendo agora? Como está sendo o processo? Você também passa por essas crises de se achar burra enquanto aprende algo novo? Qual tem sido a parte mais difícil? E a mais legal? Fique à vontade para compartilhar.
Um beijo e até nosso próximo encontro,
Simplesmente amei esse texto de tantas maneiras. Tenho muito a sensação (acho que é bem comum) de que, quanto mais estudo, menos sei. E valorizo muito o não-saber, porque é essa curiosidade que impulsiona nossas buscas.
Semana passada viralizou o texto sobre a safra de escritores pretensamente geniais, e fiquei pensando no quanto é entendiante esse meio onde pessoas se incensam e se bastam. Depois de ser proclamado gênio, o que há? Tipo nada, acho. Prefiro ser desgenial e curtir meu work in process (aprendi ontem inclusive que é mais moderno falar de processo do que de progresso)
E o texto dos pretensos gênios e o lugar do crítico era esse https://www1.folha.uol.com.br/amp/ilustrissima/2023/03/fabricacao-de-supostos-genios-desafia-atuacao-dos-criticos.shtml
Beijos e de novo: que textooooo
To aprendendo a ser uma graduanda depois de vinte anos e tem sido uma jornada gostosa. Vou mandar esse texto pros meus colegas jovens, ele é uma boia no oceano dos começos, que dão medo e que são também maravilhosos. Beijo.