Falamos de gente de outras gerações como se fossem habitantes de um outro país. São pessoas que falam palavras que não entendemos, têm outras referências culturais, carregam costumes que podem parecer exóticos e viveram guerras diferentes das nossas. O contato com alguém de outra geração, não importa se mais velha ou se mais nova, é sempre um encontro com alguém do outro lado de uma fronteira. Às vezes damos risada das suas roupas e do seu jeito de falar e até mesmo os culpamos pelos males do mundo. Mas se olharmos mais a fundo, vamos perceber que essencialmente somos muito parecidos.
Veio ao meu conhecimento o que o povo anda inventando para lá da fronteira que se convencionou chamar Gen Z. A onda agora (ou melhor, como dizem por lá, trend) é ser Delulu. Óbvio que vou atrás para descobrir do que se trata. Uma nova raça de cachorro? O termo vem da palavra delusional e indica alguém que tem uma autoconfiança delirante. Ser Delulu é, portanto, um estilo de vida que consiste em se desligar completamente da realidade ao acreditar que tudo vai dar certo, que todos os seus desejos serão realizados, que coisas boas vão acontecer se você pensar positivo, e as merdas que acontecem no caminho são, na verdade, o adubo para o cenário florido que você imagina para a sua vida.
Ainda que o otimismo seja um conceito alienígena para uma hiena depressiva como eu, consigo entender por que aderir a esse estilo de vida. Claro, acreditar em si mesmo tem lá seus benefícios (dizem), mas estava pensando mais na parte de se descolar da realidade. É o que venho tentando fazer a minha vida inteira! A realidade tem uma cara horrível, desconfio é de quem não queira se soltar dela.
Escolher um delírio para chamar de seu é uma questão de sobrevivência em tempos como esse em que vivemos. Se tá difícil para quem já está calejado das decepções de uma vida adulta precarizada, imagina para o jovem que jura que vai se formar na faculdade e já entrar em um trampo que pague dez mil. Deixa as criaturinhas sonharem!
Sei que falar de algo que "viralizou no Tiktok" e que "vem da cultura K-Pop" dá a qualquer conceito ares de uma invenção revolucionária, mas sinto informar aos mais jovens que Delulu não é nada novo. Estão aí há décadas o livro O Segredo e o filme Lua de Cristal pregando que tudo pode ser, só basta acreditar. Pois é, já vimos esse filme antes.
Outro aspecto da cultura Delulu que podemos considerar mera reprise é conferir aos jovens a ilusão de que são especiais, que o Universo age em função dos plot twists de suas vidas de protagonistas, de que eles são merecedores porque sim. Em defesa deles, preciso lembrar que os Gen Z não estão inventando nada aqui. Essa é simplesmente a definição do que é a juventude.
Vejo isso representado, por exemplo, no filme Reality Bites (no Brasil chamado "Caindo na real"), de 1994. Isso mesmo, um filme de TRINTA anos atrás já retratava uma juventude para lá de Delulu.
Lelania, a protagonista vivida por Winona Ryder, documenta com sua filmadora portátil as conversas com seus amigos Troy, Vickie e Sammy, outros jovens recém-formados e mal-empregados que dividem um pequeno apartamento, vivem sempre no vermelho, mas se ocupam integralmente dos seus dilemas emocionais e existenciais.
Lelania quer transformar essas filmagens em um documentário que ela acredita que um dia será sua grande obra. A voz de uma geração! Mas está tão acostumada a pegar o caminho mais fácil e receber na mãozinha tudo o que precisa, que espana se as coisas não acontecem conforme suas expectativas. Apega-se com todas as forças ao pouco que consegue espremer da sua "grande obra", e quando algo dá errado com seu documentário, ela entra em crise, como se nunca mais fosse capaz de criar algo bom novamente. Você nem começou ainda, fia!
Troy, interpretado pelo meu queridinho Ethan Hawke, é um músico bon-vivant desempregado que vive de tocar aqui e ali para sustentar sua pose de artista, enquanto tem conversas profundas e filosofais sobre cheeseburgers. Por que se importar em ter um emprego quando ele pode se escorar nos amigos e morar no apartamento deles? Ele acredita ser diferente, melhor, mais talentoso, e despreza os yuppies (como são apelidados nos Estados Unidos o estereótipo dos jovens urbanos profissionais, algo próximo do tipo paulistano conhecido como faria limer). Quando Lelania, por quem ele é apaixonado, começa a namorar um desses jovens bem-sucedidos, um executivo de um canal de TV vivido por Ben Stiller (olha esse elenco), Troy não consegue aceitar. Como pode Lelania preferir ficar com aquele playboy patético, ao invés de ter um romance com um cara tão autêntico e especial como ele? O mundo parece ficar do avesso se um cara que se acredita foda e merecedor não consegue o que quer. Nem é porque você é um chato do caralho não, imagina.
Algo parecido acontece quando Lelania é demitida da emissora onde trabalhava como assistente. Sua amiga Vickie, recém-promovida a gerente de uma loja Gap, indica ela para um trampo de vendedora. Lelaina nega, porque acredita estar acima daquela vaga, e diz isso sem nem se dar conta do quanto ofende a amiga. Ela se acha brilhante demais para desperdiçar seu potencial como vendedora, embora não tenha perspectiva nenhuma de arranjar dinheiro para pagar o aluguel e passe os próximos dias fumando na frente da TV, tendo longas conversas com uma cartomante que faz consultas pelo telefone, consumida pelo único assunto que interessa no mundo: o seu próprio umbigo.
A juventude descolada da realidade que Lelania tenta retratar em suas filmagens de uma perspectiva profunda, dramática e sensível, pode ser vista como nada mais que ridícula apenas alterando a edição das mesmas conversas. Uma geração de jovens pode ser lida como angustiada, intensa e incompreendida, ou percebida como mimada, ingênua e apática; depende do ângulo que se olha. Ou do distanciamento no tempo.
"Os jovens indomáveis de hoje não estão perdidos. Para esta geração falta o ar eloquente de perda que fez tantas façanhas da Geração Perdida virarem símbolos. Além disso, a coleção de ideais destroçados e os lamentos sobre a lama moral vigente, que tanto deixaram a Geração Perdida obcecada, não preocupam a juventude de hoje em dia. Eles tomam essas coisas como dadas de uma forma assustadora. Eles chegaram em meio a essas ruínas e não as notam mais. Eles bebem para 'cair' ou para 'chapar', não para ilustrar o que quer que seja. Suas excursões nas drogas e na promiscuidade vêm da curiosidade, não da desilusão. (....) Há aqueles que acreditam que em gerações como esta há sempre a chance de uma nova ideia moral, concebida em meio ao desespero, vir à tona. Outros olham para a autoindulgência, o desperdício e a aparente irresponsabilidade social e discordam."
— John Clellon Holmes, jornalista do The New York Times, em trechos do artigo "This is beat generation", de novembro de 1952, tradução minha. Você pode ler o artigo na íntegra, em inglês, aqui.
A geração Beat de Jack Kerouac também estava tentando se descolar da realidade da época, no caso, a prosperidade americana pós Segunda Guerra. A mídia os retratava como delinquentes, mal-ajambrados, jovens que se jogavam na bebida, nas drogas e na putaria por serem niilistas que não viam sentido na vida. Cada geração tem seus motivos para se desligar da realidade. Crescer em um mundo onde você vê a bomba atômica ser usada me parece ser um deles.
Em pelo menos uma coisa tenho que concordar com a Fernanda Torres na entrevista do Roda Viva:
"A idade é uma beleza. Você fica mais calmo, mais consequente, caga menos regra, tem menos certeza das coisas. (...) Desde os anos 60 há esse culto ao jovem. Essa ideia de que a juventude sempre nos trará algo novo e revolucionário. Isso é da juventude. Mas, ao mesmo tempo, a juventude fala muita bobagem. A juventude é muito cansativa, senhora do que acha, sem saber metade das coisas."
Observo em mim o processo de perder colágeno e as certezas. Já tive bastante disposição para defender o que acredito ser o certo, mesmo que bater boca com gente doida na internet signifique correr o risco de se ver inadvertidamente brigando com adolescente. Invejo mesmo é o tempo livre da juventude. Por isso é que se espera deles a revolução, fica mais difícil brigar com o status quo quando seus dias são preenchidos pela preocupação de fechar as contas do mês.
As palavras hoje levam mais tempo para sair. Em parte, porque passo mais tempo me questionando se ainda tenho o que dizer. Fico então calada, observando da janela o bloco passar. Será que preciso mesmo correr para pegar esse trem? Hoje me vejo de novo como a mais velha do meu grupo de amigos. Em parte, significa ser quem vai cuidar da amiga que bebeu demais, mas também perceber que não preciso ir até o ponto de me quebrar para conseguir me encaixar.
Há tempos que não faço questão de seguir as modas do momento. Uma vida de me ver inadequada em cada círculo que frequento me fez entender que talvez nunca chegue o dia em que eu vá me sentir ajustada. Mas ao escrever essa edição me peguei pensando se não tenho todo direito de adicionar um pouco de Delulu na minha vida. Acreditar que sou foda, que tenho a visão, que meus desejos vão se realizar. E daí que ser delirante é coisa de jovem? A vantagem de fazer isso mais velha é que sei que vou quebrar a cara, então já vou preparada para o tombo, diferente dos novinhos que não fazem ideia do abismo que os espera. A idade é mesmo uma beleza, Fernanda.
No Hard Feelings mostra Jennifer Lawrence em uma personagem com a qual muitos da minha geração podem se identificar: uma millenial 30+ falida e precarizada tentando parecer mais nova. É uma história divertida que aponta que millenials e Gen Z podem sim nutrir uma bela amizade — mesmo com um gozando na perna da mais velha, ou levando do mais novo um soco na garganta.
E eu só conseguia pensar que Matthew Broderick sessentão bem poderia voltar a interpretar Ferris Bueller, em uma continuação de sua saga, dessa vez chamada Curtindo a aposentadoria adoidado. Se nenhuma produtora de Hollywood está com esse projeto em cima da mesa, está vacilando legal.
Algumas falas do filme original inclusive poderiam ser transpostas tranquilamente para essa versão com um Ferris Bueller aposentado, sem prejuízo algum de sentido. Por exemplo, o monólogo de abertura: "a vida passa rápido demais. Se você não parar e dar uma olhada de vez em quando, você vai perdê-la".
Gerações são divisões arbitrárias ou o ano em que você nasce molda sua forma de ver o mundo?
Tenho estado meio nostálgica. Contei no Instagram que sou feita de coisas que não existem mais:
No capítulo anterior:
Diferente de Nyad, penso muito em desistir. Talvez eu devesse praticar natação para deixar de ser tão bunda mole.
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Ou então me conte nos comentários a sua percepção sobre essas fronteiras geracionais, o que vai me apetecer bastante. Você também pode responder a estes emails, como faziam os antigos babilônios, que eu sempre recebo na minha caixa de entrada.
Um beijo e até a próxima edição,
Eu ouço religiosamente um podcast chamado '60 songs that explain the 90s', e tem um episódio sobre a música tema de Reality Bites (sou fã de Lisa Loeb), e a discussão gira em torno das decisões da Lelania de ficar ou não com o músico desajustado, ou 'se vender' e ficar com o yuppie. E esse conceito de se vender, de se curvar ao sistema, ficou ressoando um bom tempo para mim. Minha sensação de inadequação com os tempos que vivemos, com o descompasso com as modas da geração Z, vem daí. Vivi as décadas que celebravam a contracultura, da juventude que queria romper com a norma e o status quo. Não que eu fosse um neo-beat ou algo assim - longe de mim. Mas eu sinto que um dos piores legados da internet que só conseguimos enxergar agora é que viramos todos vendidos. O capitalismo venceu, viramos todos gado do sistema, e não existe nada mais underground hoje em dia que viver offline. Só que essa revolução não está vindo da juventude. Talvez ela venha pela primeira vez de nós 'velhos'.
Sempre fico impressionada com a sintonia. Estive essas últimas semanas absolutamente fascinada com a ideia do tempo. Pode ser porque estou encerrando um grande momento (doutorado) e caindo num enorme desconhecido, mas enfim. Fiquei lendo teu texto e pensando como é interessante esse movimento entre gerações. Sou psicóloga e atendo várias pessoas nascidas no pós 2000. Daí de vez em quando eu paro e penso que eles não passaram sequer pelo bug do milênio! Ao mesmo tempo, as questões são muito questões que eu e meus amigos também tínhamos na adolescência/juventude. O tempo muda, são outros aplicativos, outros artistas, outros produtos nas prateleiras, mas algumas coisas permanecem (ainda que também com outras roupagens). É muito bom envelhecer. Caso a fada da volta no tempo chegasse me propondo refazer os últimos 20 anos, eu recusaria. Daqui é só pra frente (e tomara que tenha muito caminho).
obs: millenial de 1991.