Escrita, pra mim, não é terapia. Terapia é o que preciso fazer para conseguir escrever. Escrever como, paralisada de medo? Para ambas as coisas, no entanto, é preciso trabalho duro. Ir a lugares que eu preferia não ir. Ter paciência, saber que é processo que leva tempo. Claro, faço análise, não mágica. Aliás, desconfio de qualquer coisa que se venda como cura. O sofrimento não desaparece, mas ao menos consigo olhar para ele. Releio trechos de Duna, o primeiro livro da série, e lembro do que me fez achar a escrita do Frank Herbert tão bonita. Esbarro com a litania das bruxas telepatas: "Não terei medo. O medo mata a mente. O medo é a pequena morte que leva à aniquilação total. Enfrentarei meu medo. Permitirei que passe por cima e através de mim" e observo, então, ele me atravessar. O medo se torna familiar demais quando o trabalho que você escolhe envolve explorar o desconhecido. Neste momento, viro para mim mesma e digo menos, bem menos, se tudo o que faço é sentar na frente de um teclado, e não descer a duzentos metros de profundidade, fotografar animais selvagens, investigar a milícia. No entanto, o medo está lá: o de não ter mais o que dizer, de estar perdendo tempo, de não me adequar ao que quer que considerem por aí a imagem da Escritora de Verdade™. Talvez me falte estar morta para chegar lá. Isso e fotos em preto e branco segurando o queixo, bem intelectualzona. Sei lá que medo é esse de não ser levada a sério. Como se fazer arte fosse incompatível com abraçar a bobagem que em mim habita. Estava lendo sobre um artista francês chamado Yves Klein. Uma figura. Escreveu livro sobre artes marciais, era metido com alquimia, patenteou seu próprio azul, fez uma exposição sobre o nada que consistia nisso mesmo, numa galeria cheia de vazio, ou melhor, de obras inexistentes que o maluco ainda conseguiu vender — o pagamento deveria ser feito em folhas de ouro, que foram queimadas e jogadas no rio, performance para mostrar que olha, essas obras de fato nunca existiram. Para completar, ainda praticava levitação. Em 1960, sai em um jornal francês a manchete "homem vai ao espaço!" mas, em vez de mostrar astronautas na lua, a foto na primeira página mostra Yves Klein suspenso no ar. Escreveu ele: "hoje, o pintor do espaço deve, de fato, ir ao espaço para pintar, mas ele deve fazer isso sem truques ou ilusões, e não em um avião, nem de paraquedas ou num foguete: ele deve ir lá com sua própria força, usando uma força individual autônoma; em resumo, ele deve ser capaz de levitar." O jornal era uma sátira. A foto, uma ilusão, muito antes de existir Photoshop. Mas não duvido que ele levitava. É preciso suspender muita coisa para se atrever a criar o que quer que seja. É preciso enfrentar, em primeiro lugar, o medo de cair. A performance dele que mais me impressiona é outra. Mulheres nuas, lambuzadas de IKB (a distinta cor azul batizada de International Klein Blue), carimbam seus corpos em papel. Não bastasse a esquisitice (anos 60, é bom lembrar), uma orquestra segurava uma única nota musical por 20 minutos sem parar, seguida por 20 minutos de silêncio. A obra foi muito criticada. Apontaram como machista usar o corpo da mulher como instrumento de pintura. Ainda hoje a crítica faz sentido. Mas, ao olhar para os corpos carimbados, tenho outra impressão. A de que escrever é bem parecido. Não tenho outro material para usar a não ser eu mesma. Vai vendo, olho para manchas de tinta e penso em escrita. Tento fugir de mim, por medo de soar repetitiva. Mas não há escapatória. Ando no campo da ficção fazendo sujeira, deixando os rastros das minhas pegadas lambuzadas de tinta. Ficam manchados os verbos, personagens, cada vírgula. Para visitar o espaço é preciso usar sua própria força, e estar lá, de corpo inteiro. Tem outro jeito? Me jogo. Levitar é menos assustador do que ficar pregada no chão.
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Fazer arte é errar
Outra leitura que me ajudou a dar contorno ao medo no texto de hoje foi o livro Arte e Medo, de David Bayles e Ted Orland. Os autores vão dando definição a inúmeras dúvidas e angústias que atravessam o caminho de quem cria. Medos que às vezes viram muros.
Ficar pirando na busca de uma obra impecável, por exemplo. Conseguir superar essa ideia é uma luta constante. Toma um espaço enorme da minha agenda, inclusive. É um alívio encontrar nas palavras de outras pessoas o lembrete de que o erro faz parte do processo. De que a qualidade também vem da quantidade, da sua disposição de arriscar mais, experimentar mais.
Arte e Medo acaba de ser lançado em português pela Seiva. Foi traduzido pelo Daniel Lameira, que me contou que o livro sempre aparecia nas suas pesquisas por referências na área de criatividade. Perguntei pra ele o que o mais o marcou no processo de traduzir e publicar esse livro:
"Quando você é editor, você lê muita coisa por profissão, então não é sempre que um livro te impacta tanto quanto este. Entre as coisas que esse livro consegue articular, e que me impactou, é quando ele deixa bem claro que você tem que se nutrir da sua própria obra, da sua investigação. Não é uma realidade do mundo e nem uma obrigação de ninguém te dar essa validação. A arte é este trabalho onde você é seu próprio instrumento e matéria-prima. Também quando eles falam que, ao colocar nos outros esse peso de aprovar ou recusar a sua arte, você coloca na mão dos outros uma aprovação de quem você é. Sinto que o livro nos pega pela mão e nos mostra os caminhos por onde a gente pode levar a nossa mente para poder produzir.”
É um livro curto, gostoso de ler, cheio de exemplos, daqueles que vou poder voltar várias vezes para consultar em situações de emergência.
Arte e Medo está em pré-venda até o dia 3 de abril, e você tem 30% de desconto usando o cupom ARTEMEDO30:
Medo faz parte
Meu maior medo enquanto escrevia meu segundo romance era o de estar me expondo demais na história de uma cidade afundando. Encontrei um registro sobre esse início do processo e postei no blog. Foi bom lembrar que, imersa no processo, tudo é caos e incerteza. Faz parte.
Não existe certo nem errado
A linguista mais querida da internet, Jana Viscardi, está lançando seu primeiro livro, Escrever sem medo, que recomendo efusivamente a quem se sente paralisado pelas regras gramaticais, a quem acredita que escrever consiste em dominar a norma, a quem nem se aventura por medo de não fazer "certo". Linguagem é possibilidade, podemos sim nos apropriar dela.
Ela fez um vídeo para contar: ela teve medo de escrever este livro?
Nos capítulos anteriores...
Na edição passada, falei mais desse negócio de imprimir a própria vida na escrita:
Já os comentários desta edição me deixaram ainda mais na dúvida se existe ou não esse tal de livre-arbítrio:
“Como escritores estamos sempre buscando apoio. Primeiro deveríamos notar que já somos apoiados o tempo todo. Há a terra sob nossos pés e há o ar, preenchendo nossos pulmões e os esvaziando. Deveríamos começar daí quando precisamos de apoio. E então vire para uma amiga e se sinta bem quando ela diz ‘amo seu trabalho’. Acredite nela como você acredita que o chão irá te segurar, a cadeira deixará você sentar.”
— Natalie Goldberg, em "Writing down the bones", tradução livre minha
Outra coisa que posso aprender com as aranhas: a confiar que a teia que teci será capaz de me amparar. Que minha escrita é forte o suficiente para me manter suspensa no ar.
Você sempre pode me contar o que esta edição te fez pensar. Me conte como você faz para levitar.
Um beijo carimbado na sua testa,
Medo é uma merda. Paralisa, impede nosso crescimento, sacaneia a cabeça da gente. Te deixa vivo, nem sempre vivendo.
Eu tenho medo. Nunca pulei numa piscina, desço os degraus. Nunca pulei de paraquedas ou de asa-delta, prefiro os pés no chão. Nunca lancei um livro... mas vou correr esse risco. Com medo mesmo. Obrigada, bjs
Lembrei muito de uma entrevista com a Phoebe Waller-Bridge, a fleabag, em que ela descreve o processo criativo dela como "desespero e esperança". É muito doido o medo envolvido na hora de criar - que bom que tem tanta gente criando e falando que é normal, segue em frente, vamo que bora