Há alguns anos, quando me mudei para São Paulo, comecei a conhecer pessoas muito cultas, descoladas e cheias de referências que eram muito boas no jogo de dropar nomes. Que consistia em elencar, no meio de uma conversa casual, quem elas conheciam, os lugares que já tinham visitado, os livros que já tinham lido, seguido de um "como assim você não conhece?" quando eu demonstrava não saber do que elas estavam falando.
Nada como circular nas panelinhas intelectuais de São Paulo para se sentir pobre, desinteressante e atrasada! Eu tinha tanta vergonha de não ter tido acesso às mesmas referências que aquelas pessoas consideravam básicas (desculpa, é que eu não sou daqui, eu vim de outra classe social) que cheguei a listar em um caderno todos esses nomes de autores oh-meu-deus-não-acredito-que-você-nunca-leu.
Faz uns dias esbarrei com essa página e dei risada. Mais da metade desses autores listados posso dizer, hoje, que já li. Seria questão de tempo meu caminho cruzar com o deles. Só deixei acontecer naturalmente. Nem vem ao caso dropar nomes aqui; lembrei desta anedota quando esses dias uma pessoa me perguntou como saber que ela já tinha background de leitura o suficiente para começar a escrever.
Posso dizer com tranquilidade que não existe algo como uma habilitação para escrever, muito menos uma concedida apenas a quem passar num teste de dropping names; se houvesse, eu estaria lascada. Construir sua bagagem de leituras é tarefa para uma vida inteira e algo que você faz enquanto desenvolve sua escrita. Relaxa: você vai morrer antes de ler tudo o que você gostaria!1
O que me intrigou nesta pergunta foi perceber uma certa angústia que ela carrega e que tenho observado por aí de uma forma bem geral (inclusive em mim mesma!), para muito além da quantidade de livros lidos: a sensação de que o que temos, o que somos ou o que fazemos não é o suficiente.
*
Você se pergunta se lê livros o suficiente? Rápido o suficiente?
Você sente que precisa ler todas as newsletters que chegam? Sente que perdeu o controle da vida enquanto não zera sua caixa de entrada?
Você se acha mais lenta do que pessoas fazendo a mesma atividade que você? Ou faz questão de mostrar que você é mais rápida que elas?
Tem seu humor afetado quando verifica seus gráficos de desempenho, ou seu saldo bancário, ou suas medidas, ou seu número de seguidores ou curtidas?
Você age em função de alterar esses números?
Você até acha que está indo bem em algum aspecto da vida, mas fica borocoxô ao ver que alguém tem números melhores que os seus?
Ou ainda: se sente aliviada quando percebe que tem gente com números piores que os seus?
Você tem medo de ficar para trás?
Cuidado, pode ser ela: a neurose com números.
Não é de hoje que os números exercem poder sobre a nossa espécie de primatinhas. Mas convenhamos que viver em um tempo onde tudo pode ser medido e comparado, desde quantos passos você deu, até o quanto as pessoas se interessam por você, teve um efeito de nos enlouquecer coletivamente.
Tudo começou a desandar desde que acharam que seria uma boa ideia colocar números nas redes sociais. A possibilidade de ver quantas mil vezes a sua piadoca besta foi compartilhada no Twitter levou as pessoas a serem cada vez mais absurdas no intuito de fazer esses números crescerem.
Antes, os números atrelados à nossa pessoa física eram privados, como o número da nossa identidade ou quanto dinheiro entrava na nossa conta. Hoje os números são públicos, abertos para nosso valor na sociedade ser objeto de comparação, como o número de seguidores ou a quantidade de curtidas nas nossas publicações. Consegue ver seu nome ali no placar?
Este estado de comparação contínua que os putos donos das redes sociais alimentam (inclusive aqui no Substack, viu) é o motor perfeito para nos manter fazendo mais, lendo mais, postando mais. Porque sempre haverá alguém para superar. Sempre haverá um recorde pessoal para bater. Sempre haverá um número a alcançar. Claro, os danados são infinitos!
Números emanam uma autoridade. Eles mandam, a gente faz. Porque eles nos parecem tão sólidos, tão reais. Quantificar é dar forma, tornar visível coisas abstratas.
É no número que a gente se segura para sentir que temos algum controle sobre a situação. De que estamos subindo e descendo no gráfico imaginário da nossa vida devido às nossas ações e decisões, ao nosso mérito ou da falta dele, não porque a existência seja a porcaria de uma montanha-russa ligada em modo aleatório.
Não estamos subindo nem descendo; estamos capotando.
*
O jogo de dropar nomes agora também pode ser o jogo de dropar números: mostre que você é foda, culta e diferentona, ao deixar seus números caírem casualmente no meio da conversa.
Quantos livros você consegue ler, em qual velocidade você consegue escrever, quantos quilos você perdeu, em quanto tempo você conseguiu ser fluente em um idioma: absolutamente qualquer coisa pode entrar nessa competição silenciosa de "o meu é maior que o seu" que tanto amamos.
Como a
escreveu neste texto aqui: "tudo acaba virando números, até arte, até nossos hobbies, até o que supostamente estamos fazendo por prazer, para respirar, para buscar inspiração para novas ideias, para tentar entender a vida, sei lá — menos para virar competição de número"*
Se achou que eu traria a solução no final do texto, se enganou. Nem você, nem eu, nem ninguém irá pensar menos nas métricas ou agir menos em função dos números depois desta edição.
Continuaremos cadelinhas dos números, inevitáveis que são. Algum número continuará a exercer impacto na sua vida, seja para te motivar ou te deprimir. É uma neurose crônica.
O que dá para fazer é amenizar seus efeitos.
Talvez levá-los menos para o pessoal. Você não é uma ação na bolsa que valoriza ou desvaloriza de acordo com os números que te cercam.
Ou talvez lembrar que números, apesar de parecerem sólidos, reais, com muita frequência podem ser usados para mentir. E não tem enganação maior do que a ideia de que alguém, nessa espelunca de sociedade que compartilhamos, esteja com qualquer aspecto da vida sob controle. Não importa o que os números digam: não estamos.
*
As métricas esfregam na nossa cara que o que conseguimos é pouco. Sempre pode existir um número maior. Um salário, um lugar no ranking, número de vendas, quantidade de seguidores, volume de prêmios, qualquer coisa que possamos erguer como um troféu para que todos possam ver que vencemos, que nosso trabalho tem valor. E então descobrir que não dura, que mesmo o cara que estava literalmente no lugar de campeão dois anos atrás, hoje é cobrado por não ter vencido de novo.
— Do texto "Sucesso feito sob medida"
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Te trouxe cinco guloseimas
1
Como pode uma pessoa que não toca bateria, ou melhor, não toca instrumento algum, alguém com zero ritmo ou aptidão musical, ficar hipnotizada com esses vídeos de bateristas? Essa pessoa no caso sou eu mesma. Por isso estou perguntando.
Entendo que parte do apelo do canal é trazer bateristas fodas para tocar músicas que eles nunca ouviram antes.
E é bem impressionante, primeiro, pelas soluções criativas que eles encontram para atravessar um terreno desconhecido. Depois, porque fica evidente como eles têm domínio da técnica, cada um a seu modo. Mas principalmente porque... como assim um cara que é músico nunca ouviu essa do Nirvana? Onde você tava, fio? Numa caverna?
Vê como é irresistível cair nesse "como assim você não conhece essa referência que para mim é básica"?
Por isso esses vídeos são meu novo lugar de conforto. Eles deixam escancarado como é impossível conhecer tudo, mesmo o que é considerado óbvio, obrigatório, ou tenha passado de 2 bilhões de views. Mesmo quando você é muito bom naquilo.
E como é lindo assistir uma pessoa no processo de aprender.
Gostei em particular de quando deram para o Mike Portnoy, baterista do Dream Theater, uma música complicadérrima de 14 minutos da banda Tool, para ver quanto tempo ele levava para aprender a tocar.
Muito divertido vê-lo em desespero, como se não tivesse recebido uma música, mas uma equação matemática para resolver.
2
Este texto traz alguns números de 2023 sobre a realidade de produzir arte em tempo de plataformas digitais. Resumo para você: estamos fodidos de verde e amarelo!
Ele também fala de como "a arte pela arte", a convicção boêmia de que a verdadeira arte é independente de qualquer valor social ou função utilitária, hoje soa como uma alucinação, uma relíquia romântica, como a promessa de que qualquer um pode "chegar lá" se fizer esforço o suficiente.
Este assunto também me lembra um episódio do podcast Toda Quietinha, da ilustradora e quadrinista Mayara Lista, em que ela fala do drama que é bancar a vida de artista, da falta de reconhecimento, do trabalho ser sempre insuficiente para conseguir um retorno financeiro:
Tá muito legal o podcast da Mayara, estou acompanhando. Também recomendo com força o episódio no qual ela fala com vários artistas durante a FIQ deste ano, com a pergunta: "tá, mas por que você continua desenhando?"
3
O
esteve se perguntando por andam os carros amarelos que tornavam possível aquele jogo de infância de pontuar (ou colecionar beliscões) a cada vez que os avistávamos.A ideia "ninguém compra carro colorido" fez com que as pessoas passassem a comprar carros de cores caretas já pensando numa suposta facilidade na revenda. Resultado: mesmice cromática circulando pelas ruas. Mais um sintoma de como tudo vai ficando igual, sem variedade:
Não é simplesmente O Sistema que nos empurra para comprarmos um carro branco. Afinal de contas, somos nós que viajamos para os mesmos lugares para tirar as mesmas fotos. Psicanalistas talvez digam que achamos nossa individualidade sendo iguais.
Talvez seja simplesmente porque, assim como os c-level das corporações, queremos eficiência em tudo, até na nossa expressão e criatividade. Sem lugar para o risco.
— Do texto "Onde estão as Brasílias amarelas?"
4
A Seiva lançou um catálogo incrível reunindo mais de cem capistas brasileiros, mostrando alguns de seus trampos e um pouco da visão de cada um sobre o trabalho de traduzir um livro numa imagem.
Achei muito legal poder ver os profissionais por trás das capas de tantos livros que tenho na minha estante. Ver o que mais eles fizeram, o que as capas têm em comum entre si, ler um pouco sobre o processo de criação. Além de ser um excelente apanhado de referências.
O catálogo pode ser baixado de graça aqui.
5
Tenho imensa sorte de ter entre meus apoiadores verdadeiros agitadores culturais. No grupo dos Valekers tem uma porção de gente que escreve, e sempre tentamos reunir as newsletters e livros da galera em um só lugar, para ficar mais fácil trocar links.
Eis que agora os Valekers tem uma página linda de chorar! Vai lá conferir!
Culpa do queridíssimo
, que usou seus poderes para conjurar o site com suas próprias mãos (e ainda me aguentou dando pitacos). Agora temos um espaço para expor os livros e newsletters dessas pessoas talentosíssimas, e ainda reunir as infos do nosso clube do livro!Se você me apoia, não esqueça de cadastrar seus livros por lá! Os links estão fixados no topo do nosso grupo no zap.
A neurose com números também se manifesta naquela nostalgia insistente, que nada mais é que a sensação de idade batendo.
Por exemplo, esta edição foi escrita ao som de uma playlist contendo algumas das músicas que eu mais ouvia na minha adolescência:
Volto em julho com uma programação especial! A começar pelo retorno de Bobagens Imperdíveis, ficou sabendo? 13 de julho meu podcast está de volta.
Gosto de preparar coisas bonitas para o mês do meu aniversário — sim, a idade definitivamente está batendo.
Um beijo e até a próxima,
Aline Valek.
se tiver que sair com só 3 palavras desta leitura, que seja esta sequência: relaxa, você vai morrer!
Que edição maravilhosa! Sou muito do time que tenta amenizar essas neuroses com o famoso "pra quê, vamo morrer mesmo", mas até assim às vezes elas me vencem. Por isso gosto tanto de criar laços com outros artistas que também não se importam de não ter lido alguém ou assistido a série do momento. É ainda mais libertador quando a gente acha nossa galerinha do recreio e vê que não tá sozinha nessa jornada em busca de mais humanização e menos gráficos 🥰
Não tenho nem roupa pra ser citada aqui! Vai pra minha coleção de conquistas sem números 😁
Outro dia eu estava boladissima, porque só metade dos meus assinantes leem as newsletters que envio. Mesmo sabendo da armadilha, a gente vai e anda na direção dela, né?