15 de fevereiro de 2014. Era um sábado de manhã quando pela primeira vez zarpei em direção ao email dos leitores. Montei um email com muito capricho para contar as novidades da minha semana (os textos que escrevi, um conto meu saindo em coletânea), fiz até uma ilustra para colocar no topo. No título, mando uma banana para o Facebook (estava puta, mas queria ser educada).
Na época eu tinha uma página com muitos seguidores (para os padrões da época), mas o Facebook começava com aquela palhaçada de restringir o alcance das publicações, para entregar o conteúdo a apenas uma porcentagem ridícula de seguidores, a não ser que você pagasse para promover o post. A desgraça que ganhou desdobramentos e hoje conhecemos como Algoritmo. Na época eu não imaginava que esse se tornaria o quinto cavaleiro do Apocalipse, que iria deteriorar a humanidade, ajudar a extrema-direita a ocupar o poder, propagar uma epidemia de doenças mentais e fazer nossa atenção valer centavos; eu só queria publicar meus textos e garantir que chegassem a quem escolheu acompanhá-los.
Foi para fugir do algoritmo que criei a minha newsletter. Caminho sem volta: não parei desde então. De fugir do algoritmo, sim. De escrever newsletter, também. Foi do jeitinho que Caetano canta:
"Tudo era apenas uma brincadeira
E foi crescendo, crescendo, me absorvendo
E de repente
Eu me vi assim, completamente seu"
— Sonhos, Caetano Veloso
Em dez anos, deu tempo de eu me estabelecer em São Paulo e de lá me mudar para a Alemanha, deu tempo de me tornar escritora e publicar vários livros, de dar palestra em universidades, de ver meus livros nas escolas, ou como objeto de estudo em mestrados e doutorados. Deu tempo de ficar careca, de virar podcaster, de ter uma loja. Deu tempo de trocar ideia com tantos artistas que admiro e de ser lida e ouvida por vários deles. Deu tempo de ver meus amigos virarem pais, se separarem, virarem chefes, mudarem de profissão, de país, de identidade; deu tempo de ver amigos morrerem. Deu tempo de ver derrubarem uma Presidenta, de ver o Lula ser preso e ser solto e depois virar Presidente de novo, deu tempo de sobreviver a uma pandemia, deu tempo de sobreviver à extrema-direita. Deu tempo de ver o Orkut ser tirado do ar e o Twitter implodir depois de virar brinquedinho de bilionário, de ver a autora de Harry Potter cancelada, de ver o dono do Facebook tendo que depor no Senado americano, de ver o dono da Amazon ir ao espaço em um foguete fálico. Deu tempo de brincar com óculos de realidade virtual, de ver a uberização dos empregos, de ter medo de perder o meu para uma inteligência artificial, de sentir na pele as consequências das mudanças climáticas. Deu tempo de considerar seriamente o fim do mundo, de ver a foto de um buraco negro, de ver o abismo olhando de volta para nós. Ainda assim, deu tempo de continuar viva. Deu tempo de andar de barco, de pisar no deserto, de conhecer a neve. Enquanto tudo isso acontecia, continuei a escrever newsletter, uma semana, depois da outra, depois da outra.
Comecei a traçar uma linha do tempo para mostrar como a newsletter se transformou desde que comecei com esse negócio de mandar email para um monte de gente, mas o que acabei visualizando foi quantas possibilidades se abriram para mim nesses dez anos escrevendo newsletter.
Para começar, aquilo que no início eu chamava carinhosamente de bobagens acabou virando coisa séria. Cresceu, transbordou, se expandiu para outros formatos. Bobagens Imperdíveis é meu filhote transmídia. Nasceu newsletter, virou uma série de zines, dois livros e um podcast onde, por quatro anos, contei histórias com a voz. Mesmo desbravando outros mundos, continuei firme com a newsletter, registrando meu olhar sobre o mundo, dividindo com os leitores minhas descobertas e invenções, mandando meus nudes da alma.
Fazer newsletter se tornou então a base do meu trabalho. Foi o que permitiu que eu tivesse uma carreira literária. Foi o que me instigou a explorar outras linguagens.
Sei que hoje falar em "plataformas" é falar de empresas que se tornaram donas de um espaço digital. Mas já passei por "plataformas" o suficiente para entender que minha plataforma não é o Mailchimp, ou o Tinyletter, ou o Substack. Essas são ferramentas que me permitiram, por um tempo, disparar emails. Mas minha plataforma, o chão que sustenta meus passos, é essa que criei do zero, sozinha, sentando e escrevendo, ao longo de uma década.
Já que estamos nesse clima de retrospectiva, encontrei um vídeo muito antigo em que falo sobre o maravilhoso mundo das newsletters. O potencial de me retorcer de constrangimento revendo isso me deu a ideia de gravar um react para comentar este achado.
Lembra de quando te contei que estava começando a escrever um livro? E depois, de como foi terminá-lo? Cada novo capítulo que comecei na vida, cada capítulo que encerrei, vim aqui contar para você. Mostrei as obras prontas, mas também mostrei as entranhas do processo, te convidei para os meus bastidores.
Lembra das histórias que escrevi colocando o leitor como personagem? E de quando viajei para o futuro para te mostrar uma árvore com seu nome, ou de quando te contei sobre liderar um grupo super sentai só com mulheres, ou de quando te mandei um conto de terror sobre não abrir a porta para o carteiro? Lembra ainda de quando te mandei histórias em quadrinhos sobre fazer magia, sobre ser uma peça em um tabuleiro, sobre criar ficção a partir da memória? Nunca tive medo de despejar minha imaginação na sua caixa de entrada. Aqui eu me sinto à vontade para tentar e errar.
Não me fixei em uma só editoria, em um só jeito de escrever, porque eu sou uma criatura multidimensional, em constante transformação, e tento ser honesta quanto a isso quando escrevo. Às vezes falo sério, às vezes me entrego à zoeira. Não te escrevo só quando está tudo divino maravilhoso, até porque estou bem longe de ser uma pessoa odara, gratidão, otimista; te escrevo nos dias ruins, te escrevo quando sinto medo, quando me sinto frustrada, quando estou cansada e querendo desistir de tudo. Vim te contar quando saí do Brasil, te contei dos meus primeiros tropeços em uma língua tão distante da minha, da primeira HQ que consegui ler em alemão.
Hoje vejo muita gente vendendo macetes infalíveis para criar uma newsletter de sucesso, como fazer para crescer, aumentar a taxa de abertura, ter mais assinantes pagos, como se o mais importante a se alcançar tendo uma newsletter fossem números. É verdade que cresci para muito além do que eu imaginava, que alcancei tantos números que perdi a conta. Mas a única "estratégia" que conheço e com a qual me importo foi continuar a escrever da forma mais honesta que consegui. Ao longo dos anos, foi isso que muito naturalmente trouxe para perto de mim pessoas que se identificam com os meus interesses, que fazem questionamentos muito parecidos, que entendem sobre o que escrevo. Ao mesmo tempo, isso também teve o poder de afastar gente chata, sem noção, que me vê como mercadoria. Confio demais nesse método.
Escrevo sem parar todos esses anos porque me sinto solitária. Através da newsletter, pude encontrar companhia e escuta, estabelecer conexões duradouras, criar conversas profundas. Quantos emails já recebi de pessoas leitoras abrindo seus corações, me contando histórias muito pessoais, reflexões muito íntimas? Quantas vezes uma mensagem carinhosa de um leitor já me salvou o dia? Quantas vezes já recebi mensagens de alguém dizendo que salvei o dia dele? Não tem métrica que dê conta de medir isso.
Outra maravilha que a newsletter me trouxe foram os Valekers: um grupo cheio de pessoas queridas, inteligentes, generosas e criativas espalhadas pelo mundo, com as quais aprendo coisas novas todos os dias. Escrever newsletter pode ter começado como uma forma de fugir do algoritmo, mas acabou se tornando, para mim, uma forma de cultivar diálogos.
Pode ser que você receba a newsletter desde o início, pode ser que você me acompanhe há bastante tempo, pode ser que você tenha chegado recentemente. Seja qual for a duração da nossa relação, você faz parte dessa história. Tenho a maior alegria de poder ter com quem celebrar esses 10 anos de entrega, de teimosia, de palavras jorrando sem limites em todas as direções: obrigada por estar comigo, obrigada por receber minhas palavras com tanto carinho. Você sempre pode me contar o que elas significaram para você, e eu sempre vou adorar saber.
Nos últimos capítulos...
Se quiser espiar as edições mais antigas da newsletter, o arquivo está aqui. Como o Tinyletter, por onde mandei a news entre 2017 e 2020, deve ser em breve tirado do ar, os textos desse período estou postando aos poucos no meu blog, nesta tag. Para ler as edições de 2020 em diante, só clicar aqui. Nos livros Bobagens imperdíveis para ler numa manhã de sábado e Bobagens imperdíveis para atravessar o isolamento, você encontra uma seleção editada, revisada e ampliada do melhor que publiquei nos primeiros anos da newsletter.
Se algo que já escrevi durante esses 10 anos te comoveu, te fez rir, te inspirou a fazer algo, te fez companhia, te mostrou algo novo, considere apoiar meu trabalho! Algumas formas de fazer isso:
— Com uma assinatura mensal de qualquer valor pelo Apoia-se;
— Com um assinatura anual, com desconto, pelo Substack;
— Com uma doação única, do valor de um cafezinho, pelo Ko-fi;
— Falando sobre meus livros em resenhas, nas redes sociais, com os amigos, com o seu crush, no salão de beleza, na escola, na universidade, na academia;
— Compartilhando meus textos sem dó, espalhando nas redes sociais, encaminhando os emails, tirando print para postar no insta, jogando no WhatsApp, imprimindo para colar na rua;
— Recomendando minha newsletter para seus amigos, seus pais, seus professores, para sua terapeuta, para seus leitores.
Por todo incentivo, agradeço demais!
Tenho uma dificuldade absurda de celebrar onde cheguei. Outra dificuldade imensa que tenho é escrever encerramentos.
Dez anos e isso não fica mais fácil!
Talvez porque as últimas palavras que escrevo em cada edição não são bem últimas. Sempre continua, sempre terei mais a dizer depois de clicar em enviar, sempre vou querer voltar com mais.
Então me levanto sem cerimônias e fecho o computador, esperando que a gente se encontre em uma próxima edição.
Um beijo,
eu cheguei aqui pelos idos de 2015, se não me falha a memória. acompanhar essa retrospectiva foi ótimo. vc é uma inspiração.
obrigada por esses anos todos!
Sou uma cinquentenaria viciada em Aline Valek! Amava os podcast. Vivo te seguindo por onde passa. Já fiz cursos pelo domestika e sigo adepta do substack pra te acompanhar de pertinho. Comemoro contigo essa década!